CONFISSÕES DE UM ADULADOR: Capítulo 04

Por: Jorge Eduardo Magalhães

No ano seguinte, fui servir ao exército, o que para mim, mesmo com todos os infortúnios, não deixou de ser uma grande terapia, pois era tanto serviço que eu tirava que quase não tinha mais tempo para aparecer em casa, o que acabou evitando ao máximo a difícil convivência com minha mãe. Eu tirava serviço atrás de serviço e, por isso, praticamente morava no quartel.

Fui designado para servir no Regimento de Cavalaria. Inicialmente não tive grandes problemas, mas à medida que iam sendo feitos os duros treinamentos e instruções, tive muitas dificuldades tanto na ordem unida quanto nas instruções da montaria. Nas instruções de artilharia eu era sempre o pior, e sempre conseguia cometer a façanha de errar todos os tiros mesmo quando o alvo estava a poucos metros de distância. Em muito pouco tempo, me tornei a chacota do Regimento, não conseguia marchar direito: quando davam o comando de direita volver, eu quase sempre me confundia e ia para a esquerda e vice-versa. Errava os ombros-arma e apresentar-armas. A primeira vez que montei no cavalo, caí do outro lado e tive muitas dificuldades para aprender a encilhar. Uma vez ao cair do cavalo fui arrastado alguns metros porque meu pé tinha prendido no estribo. Só não foi pior porque a grama rasteira amenizou o atrito com solo e o incidente não passou de um susto, em que fiquei com pequenos arranhões e cheio de coceiras pelo corpo. Passado isso, o acontecimento foi o comentário da semana na caserna. Novamente, a minha vida se tornou um inferno, porém, um inferno bem menos cruel do que em minha casa ou na escola técnica.  Aliás, apesar dos pesares, posso afirmar com toda a certeza de que o quartel era o único lugar onde, até então, eu havia me sentido mais à vontade em toda a minha vida. Na verdade, o quartel foi um dos únicos lugares em que as pessoas, mesmo caçoando e rindo de mim, ainda esboçavam algum tipo de carinho em relação à minha pessoa.

Devido a meu procedimento bisonho, eu vivia de pernoite e serviço extra no quartel. Certa vez, quando estava de serviço na guarda, cometi todas as faltas possíveis que se possa imaginar, apresentava arma quando era para fazer ombro arma, anotava errado o número das viaturas que entravam e saíam e até o capacete do lado contrário coloquei. Não sofri punição, porque o cabo e o sargento que comandavam a guarda levaram minhas proezas na gozação. Ao menos eu tinha certeza de que seria uma figura folclórica no Regimento, onde sempre seria lembrado.

O meu sofrimento durou pouco: alguns meses depois, chegou uma leva de tenentes temporários recém-formados do CPOR e dentre eles ninguém menos do que meu querido amigo Ricardo Torres Leal, que havia acabado de se formar em oficial da reserva e estava terminando o curso de engenharia. Eu não conseguia me controlar, uma enorme felicidade brotava dentro de mim, tive vontade de abraçá-lo, de dizer o quanto sentia falta de sua amizade; mas eu tinha que me conter, pois mesmo sendo amigos de longas datas, ele era oficial e eu um mero soldado. Controlei-me, tentei disfarçar o meu contentamento e me aproximei, prestando continência com todas as formalidades militares. Sem esboçar emoção (eu não ficara zangado, compreendia o lado dele. O Ricardo era um oficial e não podia demonstrar intimidades nem grandes amizades por um praça). Cumprimentou-me formalmente e perguntou como eu estava. Falei sobre a trágica morte de meu pai e ele deu seus sentimentos. Quando verifiquei que estávamos a sós, me senti mais à vontade para perguntar pela Bianca; Ricardo, orgulhoso e ao mesmo tempo incomodado com a pergunta, disse que eles estavam noivos e se casariam assim que ele se formasse e saísse do exército, assumindo os negócios na Torres Leal Construtora S/A de propriedade de sua família.

Depois de conversarmos rapidamente e falarmos um pouco sobre os acontecimentos de nossas vidas, Ricardo me pediu licença, disse que tinha sido um prazer me reencontrar e foi se juntar aos seus pares.

Fiquei de longe admirando o quanto aquela farda verde-oliva ficava mais bonita e mais imponente nele. Como lhe caía bem! Aquelas estrelas no ombro, aquelas botas e esporas reluzentes: tudo em Ricardo ofuscava os demais oficiais do Regimento.

Provavelmente, devido à sua fortuna é que o tenente Torres (assim Ricardo era chamado no Regimento) tinha um tratamento diferenciado dos outros tenentes. Na verdade, eu nunca entendi por que ele quis ser tenente CPOR, posto geralmente ocupado por jovens de classe média, que buscavam somente um bom salário para poderem manter a faculdade.

Os oficiais superiores, inclusive o general comandante do Regimento, tratavam-no cheio de folgas e considerações, sempre tinha vantagem na escala de serviço e vários privilégios. Os seus pares, ao contrário do que se podia prever, não reclamavam, muito pelo contrário: era adorado pelos outros tenentes, que só faltavam estender um tapete vermelho quando ele entrava no alojamento ou no cassino dos oficiais. Também não era para menos, pois em todas as festas na sua cobertura, em sua casa de praia ou casa de campo, todo o oficialato do Regimento era convidado.

A minha amizade com Ricardo me trouxe muitas vantagens na caserna, pois imediatamente o meu amigo solicitou ao comandante que me tirasse da escala de serviço para ser seu ordenança. Ricardo era o único oficial subalterno que tinha um ordenança, privilégio concedido somente a oficiais superiores e generais. Saí da escala de serviço para me dedicar somente ao tenente Torres (quando estávamos a sós, chamava-o por Ricardo), quando eu limpava, encilhava seu cavalo, engraxava sua bota de montaria, dava brilho em suas esporas e até lavava a sua farda. Todos os dias eu aprontava o seu cavalo para ele montar, e ficava observando aquela figura esplêndida cavalgando. Uma vez cheguei até a ficar de quatro para ele subir em mim e montar no cavalo sem sujar as suas botas no pasto repleto de lama. Os outros soldados riam de mim, chamavam-me de puxa-saco, babão, entre outras chacotas, mas eu não me importava, sabia que era pura inveja. Aliás, sentia-me satisfeito e orgulhoso de ser amigo de Ricardo Torres Leal. E, claro, eu tinha a honra de ser o único praça do Regimento que participava das festas na casa de Ricardo onde ajudava a servir os convidados.

Foi numa dessas que reencontrei Bianca, mais linda do que nunca. Quando a vi desfilando entre as mesas dos convidados de mãos dadas com Ricardo, meu coração bateu forte, o meu primeiro impulso foi de ir correndo abraçá-la, mas, felizmente, consegui me conter. Seria melhor esperar o momento oportuno para falar com ela, pois estava ocupada cumprimentando os convidados.

Quando ela teve uma trégua, aproximei-me e, desconcertando-a, a primeira frase que lhe disse foi um infeliz “Oi, Bianca! Você está lembrada de mim?” e, olhando-me sem nenhuma expressão, me deu uma resposta negativa. Tentei refrescar a sua memória lembrando a nossa época de escola técnica. Foi nesta hora que Ricardo se aproximou, abraçou Bianca e finalmente conseguiu fazer com que ela se lembrasse de mim. Bianca me cumprimentou rapidamente e me pediu licença. Coitada, devia estar ocupada com os convidados, afinal, ela era quase da família Torres Leal. Achei graça no fato de ela não ter me reconhecido. Sabia que não era sua culpa, pois eu havia mudado bastante nos últimos anos. Foi quando o doutor Otávio Torres Leal, pai de Ricardo, perguntou-me por que eu não estava em meu lugar servindo os convidados. Tentei lhe explicar que era amigo do filho dele desde os tempos de escola técnica, mas ele não quis ouvir e mandou que eu voltasse ao trabalho.

Na segunda-feira, logo ao chegar ao quartel, soube que o general, que também estava na festa, queria me punir porque o doutor Otávio havia se queixado com ele que eu, além de abandonar o meu posto, ainda havia importunado a noiva de seu filho. Só não fui punido porque Ricardo intercedeu por mim, pedindo para que ele esquecesse o acontecido. Esse fato fez com que aumentasse ainda mais o meu respeito e admiração pelo meu grande amigo.

Durante o meu período no quartel, participei das muitas festas organizadas pela família de Ricardo, sempre tendo a honra de colaborar para que nada desse errado. A única festa que não participei foi da sua formatura. Ele disse que eu não precisava ir, porque a equipe de empregados estava completa. Eu falei que queria ir mesmo assim, afinal éramos amigos e sabia que todos os colegas da época de escola técnica estariam presentes. Ricardo, talvez devido à tensão da realização do evento, não escutou o que eu lhe disse e saiu resmungando algo incompreensível. Pobre Ricardo! Morri de rir com aquilo, ele continuava o mesmo! Sempre foi desligado desde os tempos de escola técnica! Não tinha importância, sabia que ele tinha se esquecido de me convidar por pura distração, mas de qualquer maneira não poderia deixar de prestigiar meu grande amigo num dos momentos mais importantes de sua vida. Decidi fazer uma surpresa para Ricardo e aparecer em sua festa de formatura.

No dia, estava de folga e coloquei a minha melhor roupa. Confesso que a imponência do prédio onde se realizava a solenidade chegou a me intimidar, pensei em ir embora, em recuar, mas respirei fundo e segui em frente, não podia deixar de prestigiar o Ricardo, pois sabia que ele ficaria contente com a minha presença. Cheguei à portaria e dei o meu nome ao segurança, que conferiu uma lista e disse que o meu nome não constava. Tentei em vão explicar que havia ocorrido um engano, que eu era amigo de Ricardo e Bianca há muitos anos, mas o segurança continuava irredutível.  Foi então que pedi para que ele chamasse Ricardo e, de forma ríspida, o segurança pediu para que eu fosse embora. Nesse meio tempo, chegou elegantemente vestido aquele colega da época de escola técnica que me fez andar de calcinha no pátio. Era a minha salvação, fui cumprimentá-lo e fiquei com a mão estendida esperando, em vão, que ele correspondesse. De forma arrogante, perguntou o que fazia ali; eu respondi que queria entrar na festa e lhe pedi a gentileza de explicar ao segurança que nós éramos colegas do tempo de escola, e que me deixasse entrar. O segurança, por sua vez, disse-lhe que meu nome não constava na lista e que eu estava querendo entrar de qualquer jeito na festa. O meu ex-colega, com um olhar sarcástico e um sorriso no canto da boca, disse ao segurança para que ele ficasse tranquilo, porque sabia como daria um jeito em mim. Assim, ele me pegou pela gola e me jogou no meio da rua. Caí de cara na poça d’água, gerando uma gargalhada geral. Levantei-me sem olhar para trás e fui para casa, decidido a contar tudo o que havia acontecido para Ricardo.

Naquele dia, excepcionalmente, fui para casa, machucado e humilhado. Ao chegar, me deparei com minha mãe, bêbada como sempre, que comentou sobre a festa de formatura de Ricardo e disse, com desdém, que só um imbecil como meu pai poderia acreditar que um dia eu iria me formar em engenharia. Ainda com maior desprezo, perguntou o porquê de eu não ter sido convidado para a festa de formatura.

Senti ainda mais ódio daquela mulher, por ofender a memória de meu pai, mas o que mais me intrigou foi o fato de ela saber que Ricardo tinha se formado. Nunca soube como ela tivera notícia disso.

No Regimento, tentei me queixar com Ricardo sobre o que acontecera na porta do salão, mas ele pareceu não ter entendido e saiu rapidamente. Devia estar cheio de coisas para fazer e nem prestou atenção no que eu disse.

NÃO PERCAM O CAPÍTULO DE AMANHÃ.

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4 Comentários

  1. Avatar

    Que situação! Não sei se dá pena ou raiva dele…

  2. Avatar

    Excelente Folhetim

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