Por: Jorge Eduardo Magalhães
O meu período de serviço militar estava terminando quando finalmente fiquei livre de minha mãe. Como já havia dito anteriormente, eu quase não ia para casa, praticamente morava no quartel, mas num certo dia, após sair de serviço, resolvi passar em casa para pegar umas roupas. Logo ao entrar, senti aquele insuportável cheiro de podre que se misturava com a morrinha do ambiente que, claramente, para se percebia que há muito tempo não era limpa. Com tudo revirado, sacos e mais sacos de lixo, copos com bebidas pela metade, garrafas vazias por todos os cantos e restos de comida, me fazia ter a impressão de que havia passado um furacão por ali. Tapei o nariz e fui em direção ao quarto de minha mãe, de onde vinha o cheiro de podre. Lá estava o seu cadáver nu, deitado de barriga para cima com os olhos esbugalhados e a boca escancarada já em estado de decomposição. Devia estar lá há quase uma semana, e a vizinhança não havia percebido por que o mau cheiro não vazou devido às janelas e portas fechadas. Naquele instante, passou uma espécie de flash de toda a minha vida, principalmente os maus momentos que vivi com minha mãe. Senti um misto de sentimentos em meu âmago, não sabia se ria, se chorava, se gritava. Mas, na verdade não esbocei nenhum sentimento, tomei todas as providências friamente. No óbito constava parada cardíaca, mas pouco me interessava de que minha mãe tinha morrido, porque o que eu realmente sentia era um grande alívio em meu coração em saber que nunca mais teria que olhar para aquela mulher que, infelizmente, era minha mãe.
No enterro só apareceram alguns poucos vizinhos, que de forma vazia, foram me cumprimentar.
No velório aguardava impaciente a chegada de Ricardo e Bianca, afinal eles eram meus únicos amigos e achava que eles poderiam aparecer para me dar uma força, quis até atrasar o enterro como pretexto de esperar para ver se algum parente aparecia, mas como o corpo tinha um insuportável mau cheiro, não pude esperar muito. Não fiquei chateado pelo fato de meu casal de amigos não irem ao enterro, pois sabia que eles eram muito ocupados.
Ao retornar ao Regimento, imaginei que o meu amigo, fosse me abraçar emocionado, prestando-me solidariedade pela perda de minha mãe e me pedir desculpas por não ter ido ao enterro. Fiquei imaginando meu grande amigo sem jeito me abraçando, e tentando se justificar do porquê de sua ausência num momento tão difícil de minha vida. Eu, é claro, diria que não tinha nenhum problema, pois a nossa amizade era mais forte do que tudo e eu sabia que ele tinha os seus afazeres. Mas Ricardo, ou tenente Torres, de um jeito assustadoramente frio e formal, prestou-me seus sentimentos pelo falecimento sem ao menos olhar nos meus olhos. Coitado! Com certeza não foi por mal! Devia estar muito preocupado com alguma coisa! O Ricardo sempre foi assim.
Eu já não dormia mais no quartel, afinal aquela casa era minha, só minha, podia ficar lá sossegado sem ser importunado.
Fui levando a minha vida normalmente, de casa para o quartel e do quartel para casa. Após a morte de minha mãe, tive um período de paz, que ninguém me perturbava e nada me aborrecia.
Ricardo saiu do exército para assumir a Torres Leal Construtora, empresa de sua família especializada na área da construção civil. Fizeram uma festa no quartel, organizada pelo próprio general, para a despedida do tenente Torres. Nunca em minha vida vi uma festa tão pomposa naquele quartel nem para oficiais generais. Tinha comida de sobra, muita bebida e eu, é claro, trabalhei na festa. Fiquei muito orgulhoso por ajudar a organizar aquela homenagem ao meu grande amigo.
O general subiu num palanque e falou sobre o tempo que o tenente Torres prestou seus serviços no Regimento, um oficial muito querido por todos, e ainda completou dizendo que ele seria sempre lembrado no coração de todos naquela caserna. Foi um aplauso geral, Bianca, que estava presente na solenidade junto com todos os amigos e familiares de seu noivo, não conseguiu segurar as lágrimas. Como ela estava linda! Incrível que, à medida que os anos passavam, a sua beleza ia se acentuando mais. Aos poucos ela perdia o seu ar de menina para adquirir traços de mulher, de uma linda mulher.
Naquele momento, vendo a emoção e felicidade de meus dois grandes amigos, meu coração bateu mais forte, estava muito feliz por estar ali homenageando o meu grande amigo, que homem de sorte era aquele por ter uma noiva como a Bianca. Sem conseguir disfarçar a minha emoção, não resisti e gritei de forma frenética um “Viva o tenente Torres! Felicidade, meu amigo! Você merece!”. Foi um silêncio geral, em que todos me olharam com ar de reprovação. O doutor Otávio lançou-me um imenso ar de desprezo, que me fez encolher os ombros. Senti vontade de me enfiar num buraco. Tentando acabar com aquele mal-estar, Ricardo pegou o microfone agradecendo a todos por aquela singela homenagem sendo novamente ovacionado por todos.
Depois da solenidade, houve um farto coquetel e, obviamente, ajudei a servir os convidados.
Os outros soldados me chamavam de puxa-saco, de capacho, mas eu não dava ouvidos, continuava o meu trabalho. Eles, certamente, estavam com inveja da minha amizade com o tenente Torres, afinal eu era o seu melhor amigo e isso incomodava muito as outras pessoas.
Não dava ouvidos às piadas, só queria cumprimentar meu casal de amigos que estava cercado pelos amigos e oficiais que os adulavam de todas as formas. Como as pessoas eram falsas. Não eram amigas de verdade, só se aproximavam dos dois porque a família de Ricardo era muito rica. Só eu era amigo de verdade deles, eles tinham que perceber que estavam cercados por pessoas interesseiras. Um dia, conseguiria alertá-los sobre isso, mostraria como eles estavam sendo ingênuos. Mas aquela não era a hora, tudo na vida tem o seu momento certo.
O que mais me importava ali era cumprimentar meus amigos e lhes desejar felicidade, mas, devido ao assédio, era impossível se aproximar da mesa deles. O general e todos os outros oficiais não se afastavam da mesa da família Torres Leal, eram só sorrisos.
Aquele meu colega da escola técnica, que sempre fora meu algoz, estava sentado à mesa junto com eles e, ao me avistar, fez um sinal para mim me pedindo uma bebida. Era a chance que eu queria de poder me aproximar de Bianca e Ricardo e, finalmente, poder lhes dar um abraço.
Rapidamente fui com a bandeja em direção à mesa onde eles estavam, e esse meu colega colocou o pé na frente: eu caí derrubando as bebidas em cima de Bianca manchando o seu lindo vestido.
Novamente, ocasionei um silêncio geral, que foi quebrado pelo doutor Otávio, que me segurou pela gola gritando um sonoro “Viu o que você fez seu idiota?”. Tentei em vão explicar que só caí porque aquele desgraçado havia colocado o pé na frente, mas ele parecia não querer me ouvir, estava transtornado me sacudindo pelas golas. Ricardo e Bianca seguraram o pai, tentando acalmá-lo, disseram que não era nada demais, que tinha passado. Bianca até tentou brincar dizendo que aquilo era um sinal de sorte.
Tentei explicar para Ricardo o que aconteceu, mas acho que ele não entendeu muito bem, coitado, devia estar nervoso com a situação.
O general pediu desculpa à família de Ricardo pelo acontecido, e eu fiquei de pernoite por ter estragado a festa, mas fiquei feliz da vida pelo fato de ter sido defendido pelo meu casal de amigos.
NÃO PERCAM O CAPÍTULO DE AMANHÃ.
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