Apesar de aparentar normalidade, há receio e precaução em suas estratégias de campanha. *
*de acordo com a lei eleitoral vigente, optamos por substituir os nomes verdadeiros das candidaturas por fictícios.
Com a chegada de mais um ano eleitoral, candidaturas aos cargos de vereador(a) ou prefeito(a) na Baixada Fluminense definiram suas estratégias de campanha num conjunto de territórios que, historicamente, se notabilizou por respaldar aspectos mais conservadores da política partidária. A região torna-se, mais uma vez, uma incógnita, no que diz respeito à condução das candidaturas mais à esquerda, especialmente as que autoafirmam progressistas ou consideradas de oposição mais ferrenha aos atuais governos municipais e suas vereanças locais. Tais candidaturas enfrentam uma série de desafios, incluindo a violência e a influência política de grupos paramilitares e, às vezes, em conluio com outras organizações criminosas.
Para fazer uma radiografia desse cenário preocupante, Fórum Grita Baixada entrevistou quatro candidatos e candidatas às eleições de 2024. Mas antes de problematizar a situação atual, é necessário fazer um retrospecto dos últimos cinco anos e como os impactos desse recorte histórico ainda repercutem diretamente no cotidiano das candidaturas dessa disputa eleitoral.
Uma nova Idade das Trevas.
O advento do governo Bolsonaro (2019-2022) fez extrapolar dois fenômenos tradicionalmente bastante conhecidos da população da Baixada: o avanço da influência das igrejas neopentecostais, tensionado para abraçar os costumes e valores políticos através da imposição de uma versão mais extremada do cristianismo na hora de conquistar votos, e a tendência de algumas candidaturas que, em todo o país, resultou no maior número de postulantes a cargos eletivos originários das forças de Segurança Pública nos últimos 16 anos, segundo levantamento feito pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Quatro anos depois, o que se observa é a forma como as políticas e declarações do ex-presidente Jair Bolsonaro e o atual mandatário do país, Luis Inácio Lula da Silva, serão recebidas localmente. Em alguns lugares, as políticas federais podem ser bem recebidas e usadas como argumentos contra candidatos que não estão alinhados com a administração federal. A influência de Bolsonaro pode fornecer uma vantagem significativa, especialmente em locais onde sua popularidade ainda é alta. Entretanto, como presidente, Lula é capaz de influenciar as eleições municipais por meio de políticas e programas federais que impactam diretamente as cidades.
Mas essa percepção traduz com exatidão a realidade política da Baixada? Que interpretações essa dicotomia política, ainda extremamente acirrada, pode transparecer em termos de análise? Consultamos dois jornalistas baixadenses especializados em política partidária e percebe-se que há divergência sobre a chamada “nacionalização das eleições municipais”.
– “O cenário atual está com um perfil muito mais ideológico do que administrativo. A falta de pluralismo partidário ainda é resultado da polarização política que se acirrou no país desde 2016 com o golpe que derrubou a então presidenta Dilma Roussef. Lula e Bolsonaro ainda relativizam as chances de quem vai pleitear um cargo na Câmara Municipal de sua cidade ou nas prefeituras na Baixada. Eu me lembro que Nova Iguaçu chegou a ter 12 candidatos à prefeitura na eleição passada. Hoje esse número está muito reduzido”, – afirma o jornalista Almeida dos Santos, colunista de política do jornal iguaçuano “Correio da Lavoura” desde 1990.
Para Carlos Martins, editor de Baixada do site “Correio da Manhã” não há um fator decisivo para a vitória ou derrota de candidatos(as) que queiram associar suas campanhas a Lula ou Bolsonaro.
– “O eleitor da Baixada não está preocupado, no meu ponto de vista, se o candidato a vereador ou prefeito é amigo de um ou de outro. O que pesa na eleição municipal é o cotidiano do morador da Baixada. É a senhora que vai a um posto de saúde e não encontra atendimento pro filho ou filha dela, não encontra um clínico geral. É o “seu João” que acorda às quatro da manhã e tem de se deslocar de uma cidade como Japeri e andar de trem por duas horas até chegar ao Centro do Rio, porque o seu município não potencializa políticas de geração de emprego e renda.” – analisa Carlos.
Mudança forçada de rota
Cláudia* é filha de uma ex-trabalhadora doméstica e de um sapateiro. Oriunda da escola pública e do Pré-Vestibular pra Negros e Carentes (PVNC), a primeira candidatura na cidade de Duque de Caxias foi em 2016, como vereadora, fruto do reconhecimento dos profissionais de Educação da região. Ela afirma que uma das características que mais destaca nas campanhas é fazer o enfrentamento com os poderes locais, questionando a política que é desenvolvida na região.
– “Ainda mais considerando uma cidade na qual o poder do Estado é dividido entre milícia e tráfico de drogas, com suas prévias definições sobre quem pode fazer campanha política em determinado território. Por isso, optamos em realizar panfletagens, caminhadas e outras atividades públicas em lugares de maior circulação como o centro da cidade, estações de trem, feiras, praças ou centros comerciais”, diz a educadora, que conseguiu obter a validação de suplente de deputada estadual nas eleições de 2022.
Ao ser indagada sobre ameaças que sofreu por onde sua campanha passou, ela diz que teve que voltar de determinados pontos, ao caminhar nos bairros próximos, porque traficantes proibiram a continuidade do trajeto durante uma panfletagem. E ela afirma que esse caso não é isolado.
– “Já fomos hostilizados na campanha de 2016. A gente ouvia xingamentos, falas de que ´professor não gosta de trabalhar´ entre outras questões. Em se tratando de violência política, já escutamos um candidato a prefeito dizer que nosso partido só tinha gay e bandido. Sofri campanha de difamação no WhatsApp onde acabei fazendo o Boletim de Ocorrência (BO) na delegacia de crimes virtuais. Foram inúmeros enfrentamentos à violência política de gênero e à tentativa de impedir que mulheres como eu estivessem disputando este lugar de poder na cidade.”, explica Claudia.
Normal, mas nem tanto
Também professora e cria de Nova Iguaçu, Ana* nasceu em Austin e é servidora da rede pública há quase 30 anos. Na década de 1980, militou no movimento estudantil, chegando a ser a primeira presidenta da União Iguaçuana de estudantes secundaristas, entidade do movimento estudantil de Nova Iguaçu.
Candidata em 2016 a prefeitura da cidade, em 2018, a deputada federal e, em 2020, novamente à prefeitura, Ana avalia essas experiências como positivas, enaltecendo propostas que ampliavam um conjunto de direitos das populações das periferias para as mulheres, negros, juventude e população LGBTQIA+, mas que não se furtou em tomar alguns cuidados.
– “Divulgamos nossas propostas em lugares onde tínhamos pessoas que já conhecíamos, mas também divulgamos em locais diversificados onde não tínhamos nenhuma base eleitoral anteriormente, porque entendemos que as nossas propostas deveriam alcançar o maior número de pessoas”- explica Ana.
Entretanto, nas últimas eleições, ela admite que passou por uma situação que considera bastante tensa.
– “Em 2020, andando por Comendador Soares, bairro de Nova Iguaçu, em cima da passarela da estação de trem, recebemos uma ameaça velada em que um apoiador de uma candidatura de direita falou: “E aí, professora Ana, vai dar uma de Freixo?”. Compreendemos que essa menção era referente às denúncias feitas contra a milícia, pelo deputado Marcelo Freixo, pois tínhamos feito um programa para a televisão que denunciava as milícias” – relata Ana.
Desistência por uma questão de segurança
José* é morador de Nilópolis desde que nasceu. É pessoa com deficiência ostomizada (ele sofreu um procedimento cirúrgico que liga os órgãos internos ao meio externo), bissexual, produtor audiovisual formado em Licenciatura em Ciências Sociais pela UFF e mestrando na mesma área pela UFRRJ. Em 2018 veio como candidato a deputado federal e foi um dos coordenadores do Fórum de Cultura de sua cidade.
Ele afirma que o passado e presente conservador da Baixada não é algo no DNA do povo da região.
– “Acredito que essa característica tenha sido produzida socialmente a partir de dois aspectos: o primeiro, da política assistencialista da direita, que revoga direitos para implementar assistencialismo barato e manter o povo necessitados das benesses de figuras que se apresentam como salvadoras da pátria; o segundo, de uma lacuna deixada pelo campo de esquerda, após início dos anos 2000, que abandona o trabalho de base e deixa um terreno descampado para a ação de instituições conservadoras”, afirma o cientista social.
Ao ser perguntado se temia receber algum tipo de ameaça de forma explícita ou velada em algum território por onde sua campanha pretendesse passar em função de suas crenças político-ideológicas, José responde positivamente.
– “Mas isso não significa que nos imobilizará. Sou do partido de Marielle Franco, ela era minha companheira de construção de mundo. Tenho o dever de continuar a construção de um mundo mais justo, inclusive. Mapearemos os territórios, dialogaremos com os moradores e construiremos uma campanha segura.
Contudo, semanas depois, em 12 de julho, José anunciou, em suas redes sociais, a desistência de sua campanha, justamente para garantir a sua integridade física.
– “Infelizmente não possuo condições de continuar com a pré-candidatura que eu estava construindo nos bastidores. A esquerda não precisa de mártires, mas de ações concretas”, escreveu.
O descendente de indígenas contra o coronelismo
O advogado Mateus* tem suas origens no Mato Grosso do Sul, fronteira com a Bolívia, cujo avô é indígena da etnia Guató. Aos 19 anos, conseguiu uma Bolsa Integral pelo PROUNI e iniciou a faculdade de Direito. Em 2020, após uma conversa com o Pai Paulo do Quilombo de Bongaba, uma referência cultural dos povos originários da região, este incentiva o jovem advogado a pensar em ser candidato e a se filiar a um partido.
Nos últimos quatro anos foi fundador de três movimentos no território de Magé, onde é morador há anos. O Fórum Climático de Magé, hoje conhecido como Instituto Mirindiba, em defesa do meio ambiente e combate ao racismo ambiental; o Coletivo Guarani, movimento que incentiva a cultura popular e periférica; e Movimento de Educação Popular Esperança Garcia, visando promover o acesso da periferia às universidades através de pré-vestibulares populares.
Assim como os outros três candidatos entrevistados para essa reportagem, optou por divulgar suas propostas em lugares e com pessoas previamente reconhecidas como sendo mais seguros.
– “Decidi por medo. Em Magé existem currais de votos dominados por candidatos ligados a grupos de extermínio. É impossível fazer qualquer tipo de campanha pelo meu bem e pelo bem dos moradores também. No lançamento da minha pré-candidatura, recebi muitos apoios, em especial de pessoas que não podem manifestar seu apoio em público por medo ou represália”, afirma Mateus.
E completa:
– Magé é um dos municípios mais violentos do Estado com uma coleção de crimes políticos. Temos famílias herdeiras de políticas coronelistas e grupos de posseiros de terras e milícias que se articulam para afastar qualquer tipo de ameaça aos seus poderes e negócios. É importante lembrar que Magé já teve um vereador (Geraldão) assassinado no estacionamento da Câmara de Vereadores. E também já teve sua vice-prefeita (Lidia Menezes) assassinada.
Os conflitos e as ameaças relatadas não apenas colocam em risco a integridade do processo democrático, mas também expõe a fragilidade das instituições e a necessidade urgente de reformas. É imperativo que as autoridades locais e estaduais se mobilizem para garantir que medidas efetivas sejam tomadas. Tais declarações são um lembrete doloroso de que o caminho para uma democracia saudável é frequentemente desafiador. No entanto, é também uma oportunidade para reafirmar o compromisso com a integridade eleitoral e buscar soluções sustentáveis para os problemas que perpetuam o ciclo de violência em períodos eleitorais. E em quais período for.
Reportagem especial produzida pelo Fórum Grita Baixada envolvendo as eleições 2024
Wagner Sales – Editor de conteúdo