Líder indígena brasileiro, Sepé Tiaraju (1723-1756) esteve a frente de uma rebelião para resistir às forças ibéricas que desembarcaram no atual território do Rio Grande do Sul com o objetivo de cumprir o Tratado de Madri. Nascido nas missões jesuíticas, mais precisamente em São Luiz Gonzaga, rebelou-se contra o acordo assinado entre Portugal e Espanha em 1750, que previa a entrega de parte da região das Missões aos portugueses, justamente onde os padres jesuítas castelhanos realizavam a catequização dos índios guaranis e mantinham seus povoados. A famosa frase “Esta terra tem dono” é atribuída a ele dentro desse contexto histórico.
O intrigante na história é o fato de que a presença do indígena na mestiçagem do povo brasileiro, bem que nitidamente visível, permanece como o caboclo sendo muitas vezes percebido apenas como imagem ideológica, o que é sem duvida um dos seus aspectos de como entidade etérea, ou como figura lendária. Mas o caboclo é raramente visto na sua realidade concreta cotidiana, como presença numa mestiçagem onde o branco e o negro tornam difícil distinguir sua “cor” especifica. Será que a herança indígena traz em si esta capacidade de se tornar “invisível”, de se fazer desapercebida, como estratégia necessária na sua sobrevivência? Por outro lado, como explicar que de uma maneira geral nosso olhar atual esteja raramente consciente desta presença, tal como ela se revela nos traços físicos e culturais do brasileiro? E se não é vista, será que ao menos temos escutado esta presença em nossa língua e no que ela diz? Uma relação histórica entre negros e os povos nativos, passa a existir com o desenrolar do processo de colonização do Brasil.
Escutemos com mais cuidado esta voz de Itapuil, “a pedra que ronca”, na definição popular e popularizada da toponimia indígena.‘ Será que é preciso ser poeta para perceber, como Caetano Veloso, que “a forma vem desta pedra, que se chama Itapuii, fala tupi, fala yorubá?”A percepção que entendemos hoje se conhecemos nossa origem se torna muito difícil nesse século XXI, pois tratamos nossas raízes muito distantes algo que não está encarnado em nos, ou não deixamos? Tradições que garantem a sobrevivência de certas lendas e mitos provenientes de diferentes etnias e nacionalidades na origem do povo brasileiro podem refletir força e fraqueza próprias a este povo. Em manifestações artísticas de “tradições orais”, certos aspectos da força e da fraqueza humanas se fazem presentes na trama de dramatizações. Que se desenvolvem quase sempre como uma caricatura do que se passa na vida real. O sentido de uma representação pode mudar com o tempo, ou segundo as circunstâncias onde é encenada, e até mesmo segundo o “olhar” que a observa. Mas é sempre possível perceber nestas manifestações certos elementos históricos.
Assumir uma identidade cultural traz, no entanto, problemas psicológicos e ideológicos para um mestiço. Antes de mais nada a seu próprio olhar, dada a dificuldade de integrar em si mesmo aspectos dessemelhantes das histórias vividas pelos seus ancestrais num contexto de senhores e de escravos. Dificuldade está agravada pelo fato de que as injustiças sociais do passado se prolongam, transmutadas, numa história presente marcada pelas desigualdades. Em seguida vem a questão de que escolhas múltiplas são dadas a um mestiço para a negociação de uma imagem identitária face ao olhar do outro.
Nesta negociação, estrutura-se um discurso identitário que se baseia em dados referenciais do passado ancestral. Acontece, porém, que a história real, vivida, nem sempre coincide com o discurso sobre esta história. Muitas vezes, por exemplo, toma-se como elemento identitário próprio a uma certa etnia o que na verdade é contribuição cultural de uma outra. Além do mais, é sabido que inúmeras referências baseadas em tradições e consideradas como emblemáticas de uma certa identidade podem ser investidas de sentidos diversos (e mesmo opostos), na dinâmica do cotidiano vivido em circunstâncias e tempos diversos. Acrescente-se que a realidade atual do mundo desmistifica os discursos apologéticos da democracia racial que possibilitava a muitos a ilusão de uma referência.
Encontrar em si referências “identitários”, integrando e aceitando os aspectos de uma história que ultrapassa a simples história individual é um desafio. Ter consciência desta história, sem se deixar levar por seu legendário significa encarar de perto a realidade. Paradoxalmente, encarar de mais perto o legendário de um povo significa também melhor compreender a realidade da sua história, pois se não compreendemos o passado, nunca iremos entender o futuro! Quando se fala do indígena no Brasil atual, a imagem evocada, em geral é unicamente a dos nativos puros, dos que tendem a desaparecer face à irresponsabilidade social do país. Lembremos ainda que pós independência, no bojo do projeto de fazer do Brasil uma nação civilizada, ocorreu no incipiente meio intelectual brasileiro um movimento indianista bastante significativo, moldado no romantismo europeu.
Denilson Costa