Segundo a cultura popular, a cachaça é oferecida para o santo em busca de proteção. Essa expressão e o ritual têm influência direta dos colonizadores portugueses e jesuítas. O costume de derramar bebida no chão, antes de beber, é uma prática muito mais antiga que o próprio Brasil.
A palavra álcool tem origem árabe “Al Kuhul” que curiosamente significa fina poeira referindo-se ao sulfeto de antimônio, cosmético muito usado pelos egípcios. Posteriormente este termo passou a designar qualquer essência como o álcool. Entre o século X e XII, os alquimistas europeus classificaram o produto da destilação como “aqua ardens” literalmente água que pegava fogo. A água que ardia posteriormente foi obtida com um maior teor alcoólico e foi chamada de aqua vitae, eau de vie em francês e uísque beatha em irlandês. Esta água da vida ou quintessência era usada pelos médicos como remédio.
Período da introdução da cana de açúcar no Brasil. Nos engenhos de cana, o que restava da produção de açúcar era dado aos escravos e aos animais. Este resíduo era a borra do melaço fermentado, conhecido como “vinho de cana”. Esta borra é chamada até hoje pelos espanhóis de “cachaza” ou cagassa em português. Os jesuítas registraram que a “água ardente” era dada aos escravos. Bebidas alcoólicas não eram muito comuns no continente africano, em função do islamismo (“Ó vós que credes, o vinho, os jogos de azar, os ídolos e as flechas da adivinhação são obras repugnantes do demônio. As únicas aguardentes existentes eram os de mel de abelha e sorgo”).
A palavra cachaça vem da “primeira fervura da cana, que se alteia e toma a forma de um cachaço”. Mas existe a palavra espanhola “cachaza” e fica-se na dúvida se foi o cachaço português que influenciou o espanhol ou vice-versa.
Segundo o jesuíta André João Antonil (1649-1716) em seu “Cultura e Opulência no Brasil por suas Drogas e Minas”, cachaça era a “…espuma grossa que se tira das caldeiras na primeira fervura do caldo de cana durante o processo de evaporação”. O fato é que a palavra praticamente não foi usada em Portugal, existindo somente no Brasil para nomear a bebida destilada obtida do caldo ou melaço da cana de açúcar moída.
Datam de 1516 as primeiras iniciativas oficiais para o estabelecimento da indústria do açúcar no Brasil, na forma de “engenhos reais” por ordem de D. Manuel (1469-1521). No entanto, somente em 1532, aparecem as primeiras notícias de engenhos estabelecidos solidamente em terras brasileiras, sendo o mais famoso deles na Capitania de São Vicente, próximo a Santos, no litoral paulista. Num engenho da Capitania de São Vicente, entre 1532 e 1548, descobrem o vinho de cana de açúcar – Garapa Azeda, que fica ao relento em cochos de madeiras para os animais, vinda dos tachos de rapadura. É uma bebida limpa, em comparação com o Cauim – vinho produzido pelos índios, no qual todos cospem num enorme caldeirão de barro para ajudar na fermentação do milho, acredita-se. Os Senhores de Engenho passam a servir o tal caldo, denominado Cagaça, para os escravos. Daí é um pulo para destilar a Cagaça, nascendo aí a Cachaça.
A cachaça era fabricada quase em todo lugar onde houvesse um engenho de açúcar, em todo o Brasil no Vale do Paraíba se destacam várias cidades como Lorena, Guaratingueta, Pindamonhangaba…
Virou moeda de troca, usada para comprar escravos na África. A produção nacional passou até a incomodar o governo português que viu sua venda de vinho e de seu destilado, a bagaceira, despencarem. Tentaram proibir a produção da cachaça, mas tal tarefa revelou-se quase impossível. Nos dias úmidos e frios, o duro trabalho nos canaviais tornava essencial a ingestão de uma dose da “dengosa”. Era também excelente lenitivo para cativos adoentados. O trabalho nas Minas também não se fazia sem a “branquinha”, que mantinha aquecidos os escravos que ficavam horas mergulhados nos rios, lidando com as bateias. Dizia-se que podiam passar malvestidos e mal alimentados, mas jamais sem um gole de aguardente. Sua situação de gênero e primeira necessidade era tão evidente que, em 1720, na vila de Pitangui, uma revolta quase eclodiu quando o governo tentou dificultar seu comércio.
Se o tráfico com a África dependia primordialmente do escambo do tabaco, apoiava-se também na troca da aguardente brasileira. Tanto assim que em 1649, quando proibida à fabricação do “vinho do mel de cana”, por atrapalhar o comércio do vinho português, houve grande reação de todos os que se beneficiavam do comércio de escravos. Até 1661, quando o veto foi levantado, a produção permaneceu estável, contando inclusive com a conivência daqueles encarregados da administração colonial. Debret em seu livro Viagem pitoresca e Histórica ao Brasil de 1830 ao relatar as doenças a que estavam sujeitos os escravos relata: “porém, o mais incurável desses flagelos que grassam entre os escravos masculinos, é o abuso da aguardente, cachaça.
Essa bebida, infelizmente de preço módico e com que se embebedam todos os dias, acaba por torná-los tuberculosos, ceifando grande parte deles” o que mostra que a bebida tenha sido motivo para baixa de produtividade dos escravos.
Na Conjuração Mineira a cachaça passou a ser um dos símbolos. Os inconfidentes valorizavam o produto nacional e incentivaram o consumo do que até hoje os portugueses chamam de aguardente da terra. A cachaça, sendo relativamente barata, tinha conquistado o país. Em quatro séculos de história ganhou diversos nomes. O novo dicionário Houaiss registra mais de 500 sinônimos para a cachaça do “abre” à “zuninga”. Embora a elite brasileira tenha por vezes torcido o nariz para a cachaça ela tornou-se a bebida nacional, a cara do Brasil.
Nas religiões de matriz africana sua presença é constante, especialmente nos despachos. O catolicismo não foi menos influenciado pela “pindaíba”. São Benedito era catado nas trovas populares com o “santo preto, que bebe cachaça e ronca no peito”.
No interior do Brasil é comum tomar-se pinga com limão e mel. Um saudável remédio para gripes e resfriados. A aguardente tornava-se novamente a água da vida dos alquimistas.
Hoje,a cachaça é a segunda bebida mais consumida no País, perdendo apenas para a cerveja, que no ano passado despejou mais de 9,7 bilhões de litros nos copos dos brasileiros, contra 1,3 bilhão de litros da aguardente.
Denilson Costa