Por: Jorge Eduardo Magalhães
Após tocar o sinal da última aula, Ana Flor dispensou a sua turma de terceiro ano do Ensino Fundamental, como sempre fazia, almoçava no refeitório a comida horrível da escola e colocava em um pote algumas sobras, dadas com má vontade pelas serventes para levar aos bichos de estimação de sua mãe. Morria de vergonha, mas se chegasse em casa com o pote vazio, Dona Evarista fazia um escândalo, ofendendo-a de todas as formas.
A mesma coisa acontecia se chegasse em casa sem os Refrigerantes Miquelina, que Dona Evarista era viciada. Apenas em um velho bar da Piedade, bairro onde morava, que podia encontrar a bebida nos mais diversos sabores, Miquelina Cola, Guaraná Miquelina, Miquelina Laranja, Uva e Limão. Não importava: bebia todos eles.
Acumuladora compulsiva, Dona Evarista quase não saía de casa devido a seu sobrepeso e suas feridas na perna, que a dificultavam de andar. Além de Ana Flor, ainda viviam na casa Margarida a irmã dois anos mais nova, com seu namorado, Wesley, de apenas dezoito anos e a filha dela, Brenda, dois anos mais nova do que o namorado da mãe. Os três passavam o dia inteiro no quarto, debaixo de cobertas, assistindo a séries, graças a um ponto de internet que conseguiram clandestinamente.
Dona Evarista passava os dias assistindo várias vezes aos mesmos programas e comerciais, gravados e regravados em velhas fitas de VHS, reproduzidas por um obsoleto videocassete. Seus programas preferidos eram os antigos comerciais dos Refrigerantes Miquelina, protagonizados por sua sobrinha, Sandra Isabel, mais conhecida como Sandrinha Miquelina, e as várias exibições do Adilson Show, um programa de auditório no qual Sandra Isabel era uma das dançarinas, que eram chamadas de adilsetes.
No enorme quintal de sua casa, era preciso andar com cuidado para não pisar nos gatos e cachorros. A antiga casa com o velho laguinho e pedrinhas, construído por seu pai, em meio a um pitoresco jardim, estava com as águas verdes e coberto de mato. A casa cheirava mal e dava para sentir do outro lado da rua. A antiga casinha do Príncipe, com seu nome, ainda estava lá, desgastada, ao relento.
Na escola, até os alunos comentavam que “a casa da tia fedia”. Aliás, “a casa que cheirava mal” era conhecida em todo o bairro. Dona Ivone, a diretora da escola em que ela trabalhava e que sua mãe havia sido servente por vários anos até se aposentar, sempre perguntava com sarcasmo:
– E a Evarista? Como está? Mande um abraço a ela.
Sentia um tom cruel em sua voz. Tinha vontade de lhe dar uma resposta à altura, mas contava até três, respirava fundo e forçava um sorriso.
Nos tempos em que a mãe ainda trabalhava como servente, e ainda podia andar na rua, era motivo de chacota na escola e no bairro, pois sempre catava restos de comida e andava cercada de cães pulguentos atrás de algum alimento. Levava para casa todos os cães e gatos que encontrava pela rua, que foram se reproduzindo, até o quintal e todos os cômodos da casa ficarem infestados por eles.
Na verdade, Ana Flor não sabia por que, aos seus trinta e sete anos, ainda não tomara um rumo em sua vida. Precisava se libertar daquilo tudo, afastar-se daquela louca família, mudar de escola, de bairro e seguir a sua vida. Pensava todos os dias nisso, mas não tinha coragem.
Olhou, melancolicamente, para o outro lado da linha do trem, em frente à estação da Piedade. O outrora imponente prédio da universidade, em que começara o seu curso de Pedagogia e não concluíra, estava abandonado, completamente em ruínas. Doces e tristes recordações daquela época, em que ainda conseguia sonhar.
Andava alguns quarteirões, olhando o comércio, fazendo hora para chegar em casa. Antes, precisava parar no bar do Toninho, o único lugar onde vendia os Refrigerantes Miquelina. Se voltasse para casa sem a bebida, mãe a xingava de tudo quanto era nome. Dona Evarista bebia tudo em um único dia.
Por acaso, antes de pagar pelas bebidas, percebeu pelo rótulo que estavam dois meses fora da validade.
– Como o senhor pode vender algo fora da validade, com dois meses vencido?
– Pode levar que estão bem conservados.
– Não. Muito obrigado.
– Você quem sabe – disse o comerciante, tranquilamente, pois sabia que Dona Evarista era viciada na bebida, e obrigaria a filha a voltar para comprar, mesmo vencida.
Ana Flor foi entrando no quintal da casa com cuidado para não pisar nos animais e nem nos seus excrementos. Nem sentia mais o mau cheiro da casa, de tão acostumada que estava. Entrou na velha casa com cuidado. A sala era repleta e latas e garrafas velhas dos Refrigerantes Miquelina e cartazes nas paredes, já amarelados, com a foto de Sandra Isabel fazendo propaganda da bebida e o slogan “Refrigerantes Miquelina, o doce sabor que fascina”.
Sua mãe assistia pela milésima vez ao mesmo Adilson Show com suas adilsetes, dentre as quais, Sandra Isabel dançava, enquanto artistas praticamente desconhecidos apresentavam-se.
– Essa tua prima é muito talentosa, não acha?
Não respondeu, apenas olhou para o quarto de Margarida: estava, como sempre, assistindo a séries debaixo da coberta, ao lado do namorado e da filha. Sobre a cama, pratos sujos com restos de comidas.
– Trouxe meus refrigerantes? – perguntou Dona Evarista, coçando as pernas feridas, cobertas por ataduras.
– Não, mamãe.
– Mas por quê? – perguntou com agressividade.
– Os refrigerantes estavam todos já com dois meses fora da validade.
– E daí, sua imbecil? Eu quero saber de validade?
– Mas, mamãe…
– Você é mesmo uma lesma, bem que poderia ser como tua prima. Vai lá e traz meus refrigerantes!
Falava aos berros. Margarida, sua irmã, alheia a toda discussão, só pedia silêncio para poderem continuar acompanhando a série.
Sentiu um ódio em seu coração. Estava farta daquilo tudo: sustentar a casa praticamente sozinha, viver no meio daquela imundície e servir de chacota para todos no trabalho e na vizinhança. Respirou fundo e voltou ao bar do Toninho para comprar os refrigerantes de sua mãe.
NÃO PERCAM O CAPÍTULO DE AMANHÃ.
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Bem impactante, logo no primeiro capítulo! Sucesso!
Excelente. Quero ler o proximo capítulo
IParece que tô sentindo um cheiro do Realismo…
Adorei!!!!! Aguado o próximo capítulo.