Por: Jorge Eduardo Magalhães
A pequena Brenda estava suja e com fome. Adaptara-se ao Nan para bebês, pois só no início de seu nascimento que a mãe lhe dera o leite materno. Por alguns instantes, Ana Flor olhou o seu entorno, aquela casa imunda, fétida, gatos e cachorros por todos os cantos, sua mãe aos gritos, bebendo o Guaraná Miquelina no gargalo e Brenda se debulhando em lágrimas.
Sentiu um enorme asco daquilo tudo. O incômodo que a abatia há bastante tempo se intensificou ainda mais. Teve o impulso de agredir a mãe com uma cadeira e sufocar o bebê com um travesseiro, mas respirou fundo, contou até três e sentiu vergonha de seus pensamentos.
Rapidamente trocou a fralda da pequena, deu-lhe banho e preparou a mamadeira. Sua mãe foi cessando o escândalo e acalmando, entupindo-se de Miquelina. Alimentada e limpa, a pequena Brenda adormeceu, assim como Dona Evarista, que roncava de boca aberta, diante da TV.
Novamente, Ana Flor desejou que a mãe não acordasse mais e a sobrinha morresse por refluxo, sufocada pelo próprio vômito. Lembrou-se de quando era criança, que soube que um bebê do bairro havia morrido daquela forma. Contudo, logo sentiu vergonha dos pensamentos malignos.
Sentia-se sufocada. Sempre almoçara na escola, mas, naquele dia, não teve aula, devido à falta d’água no prédio da unidade escolar. Ana Flor estava com fome e precisava sair um pouco para arejar a mente. O forte odor que a casa exalava parecia estar ainda mais forte e ardido.
À medida que ia se afastando de casa, sentia um alívio, pois o cheiro diminuía gradativamente. Ficar longe de sua fétida morada e da precária escola em que trabalhava era um alívio, mesmo que fosse apenas por algumas horas. Precisava dar um jeito de se livrar daquele martírio, pensava.
Passou na porta de uma pensão que servia uma comida caseira. O cheiro era bom. Estava com fome. Quem lhe atendeu foi um rapaz, jovem como ela. Foi muito atencioso. Não era feio nem bonito. Aliás, deu-lhe uma atenção muito especial. Ana Flor se sentiu lisonjeada.
Ana Flor passou a comer frequentemente na pensão.
– Está boa a comida?
– Uma delícia!
Toda vez que Ana Flor entrava na pensão ao sair do trabalho (não comia mais na escola), sempre no mesmo horário, ele falava:
– Chegou o meu anjo!
– Tudo bem?
– Melhor agora! – sempre respondia o rapaz.
Tornou-se quase um ritual. Ana Flor se sentia bem naquele local tão aconchegante. Chamava-se Robson e Ana Flor lhe deu a alcunha de Robson da Pensão, e a afinidade dos dois começou a se intensificar ainda mais. Cada um contava um pouco de sua difícil trajetória.
Ana Flor contou todo o processo de decadência de sua família e de enlouquecimento de sua mãe. Robson ficou à vontade para contar que fora criado na Baixada Fluminense e estava, há alguns meses, morando em um quarto, nos fundos da pensão que era propriedade de uma tia.
– Quero estudar, terminar meus estudos e ingressar na faculdade.
– E eu quero terminar meu curso de Pedagogia.
– Podemos ingressar na faculdade juntos! – dizia Robson.
– Quem sabe?
– Agora temos um outro para nos cuidarmos.
– Pois é.
Trocaram um demorado beijo, sentados em um banco de uma barraca de cachorro-quente.
– Sinto-me à vontade contigo. – dizia Ana Flor, encantada.
– Você foi um achado em minha vida.
– Não te largo mais.
– Nem eu.
Novamente se beijaram.
Já no segundo ou terceiro encontro, Ana Flor foi para o quarto que, apesar de pequeno, estava limpo e arrumado. Ali mesmo, Ana Flor se entregou a Robson. Havia bastante tempo que não tinha uma relação sexual. O primeiro e único homem, até então, fora José Roberto.
Fizeram amor ali mesmo na estreita cama onde Robson dormia. Apesar de minúsculo e abafado, pois o pequeno ventilador não dava vazão e fazia um intenso barulho, sentiu-se bem à vontade naquele local. Logo na primeira vez, voltou para casa extasiada e retornou mais vezes para se entregar ao seu homem, em uma conjunção carnal que ficava cada vez melhor.
Ana Flor comprou um ventilador maior para o quarto de Robson.
– Não precisava! – disse Robson, sem jeito.
– Não tem problema. Também usarei, pois durmo aqui contigo com frequência. – justificava Ana Flor.
Na verdade, Ana Flor não sentia aquela paixão intensa como fora com José Roberto. Aliás, Robson nem era bonito, não era culto. Até era bem simplório, mas ela gostava de sua companhia.
– Quero prosperar para termos uma vida em comum. – Argumentava Robson, com olhar apaixonado.
– Você precisa prosperar para você mesmo, não por mim nem por ninguém.
– Mas você é meu grande estímulo.
Embora se sentisse bem à vontade com Robson, ficava preocupada, pois percebia que o rapaz estava completamente apaixonado, enquanto ela o via apenas como uma amizade com algo a mais. A companhia daquele jovem tão esforçado revigorava suas forças.
Em uma tarde, ao chegar da escola, Dona Evarista foi interpelá-la:
– É verdade que você está saindo com aquele rapaz lá da pensão?
– Sim. Por quê?
– Você não sabe mesmo escolher homem.
– Me deixa, por favor.
– Depois que ele se fartar, satisfizer o apetite dele…
Ana Flor preferiu não responder a mãe. Na verdade, apesar de se deitar com ele, de sentir prazer no ato sexual, via-o mais como um amigo. Não sofreria tanto se ele a abandonasse.
Certo dia, depois de fazerem amor, após terminar as aulas e o serviço na pensão, Robson foi decisivo:
– Ana Flor, quero conhecer a tua família.
– Agora não.
– Mas por quê?
– Olha, vou ser muito sincera contigo…
– Diz.
– Você pode não gostar do que irá ver.
– Como assim?
– Já te falei que minha família é bem disfuncional, sei lá.
– Não estou entendendo.
– Na verdade, tenho vergonha da minha família.
– Mas que bobagem. Venho de uma família pobre.
– Não existe família como a minha.
– Está bem. Quando você quiser, me convide.
– Está bem.
Retomaram as carícias.
Mais tarde, durante a noite, sozinha em seu quarto, Ana Flor não sabia o que fazer. Pensou até em alugar uma casa em outro bairro, para viver com Robson e pedir remoção para outra escola; entretanto, embora tivesse muita afinidade com o rapaz, ainda achava muito cedo para terem uma vida em comum, pois estavam juntos há um pouco mais de três meses.
Certo sábado, escutou alguém chamando no portão. Ana Flor sentiu calafrio ao perceber que era Robson.
– Robson?
– Vim conhecer a tua família. – disse Robson, já meio estranho ao olhar o aspecto do quintal e o mau cheiro que a casa exalava.
– Você está bem?
– Sim… – disse Robson, atônito com o excesso de cães e gatos no quintal, além de tralhas.
Dona Evarista, andando com dificuldade, aproximou-se do portão.
– Bom dia! – disse Dona Evarista, forçando um sorriso.
– Bom dia! – respondeu Robson.
– Esta é a minha mãe… – disse Ana Flor, constrangida.
– Prazer, Robson.
– Convida o moço para entrar, Ana Flor.
– Ah sim, desculpa. Vem aqui, Robson.
O rapaz permaneceu calado e atônito. Ana Flor percebeu que ele levava um baque ao se deparar com todos os cômodos da casa, repletos de felinos, e tentou disfarçar o mal-estar devido ao forte odor. Logo Robson que era tão caprichoso, diante daquele ambiente imundo.
Naquela manhã, para azar de Ana Flor, toda a família estava em casa. Margarida saiu do quarto em trajes mínimos, ignorando Robson.
– Margarida! Tenha modos! – advertiu Ana Flor.
– Não enche! Estou na minha casa! Você não está vendo que a Brenda está chorando? Deve estar com a fralda suja.
– É tua filha? – perguntou Robson assustado.
– Não é minha sobrinha… – respondeu Ana Flor constrangida.
– Ela que é a mãe? – questionou Robson, em relação a Margarida.
– Sim.
Ana Flor percebeu que Robson queria perguntar por que Margarida não trocava a fralda da menina, que se debulhava em lágrimas, já que ela era a mãe. Mas ele não perguntou.
Dona Evarista bebia uma Miquelina Cola no gargalo.
– Quer? – ofereceu Dona Evarista a Robson, tirando o gargalo da boca e levando em direção a Robson.
–Não. Muito obrigado.
– É Refrigerante Miquelina. Uma delícia. Patrocinava o programa que minha sobrinha era dançarina. Você já ouviu falar na Sandrinha Miquelina?
– Não senhora.
– Minha sobrinha querida. Uma grande atriz. Agora está fazendo carreira no exterior.
– Troca logo a fralda da Brenda! Não estou aguentando essa praga chorar! – berrava Margarida.
– Pois é, Robson. Você não tinha nada que vir aqui. Por isso, nunca te convidei. Essa é minha família.
– Estou vendo. Desculpe ter vindo sem ser convidado. Depois nos falamos. – disse Robson, secamente.
Despediu-se de Ana Flor com um beijo no canto esquerdo do lábio, e saiu sem olhar para trás.
Ficou uma semana sem procurar Robson, de tanta vergonha, até que criou coragem e foi até a pensão em que ele trabalhava. Havia pedido demissão, pois recebera uma proposta de emprego em São Paulo.
Dona Evarista, ao saber que Robson havia saído do emprego e se mudado, disse com satisfação:
– Não disse que ele te abandonaria?
Ana Flor se trancou no quarto para chorar.
NÃO PERCAM O CAPÍTULO DE AMANHÃ.
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Essa moça sofre! Coitada!
Que familiazinha de bosta.