Por: Jorge Eduardo Magalhães
Recordando todas essas passagens de sua vida, Ana Flor chegava à conclusão de que as coisas se deterioravam ao seu redor. A fábrica de açúcar a qual seu pai se dedicou integralmente, fechou as portas, assim como a universidade, que começara seus estudos, do outro lado da estação, com seu prédio, outrora, tão imponente, agora se encontrava em ruínas.
As coisas em sua casa e o cotidiano familiar iam de mal a pior. Brenda, sua sobrinha, agora era uma adolescente e, assim como Margarida, não completara nem o Ensino Fundamental e acompanhava a mãe aos bailes funks. Compartilhavam as diversões e até os namorados.
Durante o dia, ficavam assistindo séries na TV Pirata que pagavam a mensalidade por um preço módico, à noite saíam juntas para pagodes e bailes funks. Recentemente, Wesley, namorado de Margarida, bem mais jovem do que ela, ficava assistindo Tv com as duas no imundo e desarrumado quarto em que as duas dormiam.
Dona Evarista havia, literalmente, parado no tempo. Aposentada pelo município por invalidez, com salário proporcional, ficava o dia inteiro diante da televisão assistindo a antigas fitas VHS assistindo aos vários programas Adilson Show, sempre pausando quando aparecia sua sobrinha Sandra dançando, quando não podia faltar os Refrigerantes Miquelina.
A casa estava caindo aos pedaços e ainda mais imunda. O antigo laguinho com pedrinhas, agora era um monte de água verde e fétida. O número de cães e gatos, durante o decorrer dos anos, havia aumentado consideravelmente; aliás, a sua casa era famosa no bairro, devido ao mal cheiro, que se sentia do outro lado da rua e a sua imundície, de forma geral. De fato, era algo bizarro.
Por diversas vezes, devido a denúncias da vizinhança, apareciam fiscais no portão e Ana Flor era obrigada a lhes dar algum agrado para que fossem embora e não notificassem a sua residência. Era constrangedor e, principalmente, um prejuízo financeiro para Ana Flor.
No decorrer do tempo, não conseguira retomar o seu curso de Pedagogia e, agora, percebia que o seu sonho de se formar estava ainda mais distante, tendo em vista que a universidade em que começara os estudos havia fechado. Antes, ainda sentia a universidade ali perto, do outro lado da estação. Era só atravessar a passarela e destrancar a matrícula; contudo, com a falência da instituição não tinha mais ideia de como recomeçar.
Ainda não havia conseguido montar uma estratégia para sair daquela casa, mudar de bairro, pois, praticamente, sustentava sozinha a casa. Cuidou da sobrinha, tentando lhe passar valores e ser diferente da mãe, mas tudo em vão, Brenda seguia os mesmo passos tortuosos de Margarida.
A escola municipal que fora alfabetizada e trabalhara, durante todos aqueles anos, estava cada vez mais sucateada, tanto no sentido material, quanto no humano. O prédio estava caindo aos pedaços e aquela unidade de ensino era um verdadeiro depósito humano.
Ao olhar para os alunos, recordava-se do tempo em que ainda era criança, quando ia para a escola com camisa de abotoar, saia de prega e sapato de boneca; enquanto, na atualidade, os alunos iam de qualquer jeito, inclusive de chinelo e camisa de seus respectivos times de futebol.
As salas de aula lotadas, bem acima de sua capacidade, sem ventilação e com as paredes pichadas. Os banheiros em estado lastimável e nem a sala dos professores escapava do caos que reinava naquela unidade escolar. Os ventiladores não funcionavam e o calor era insuportável.
Ana Flor se questionava do motivo pelo qual não tinha uma boa qualidade de vida nem em seu lar nem no ambiente de trabalho; tinha a impressão de que um era a extensão do outro. Os dois locais em que resumia a sua vida eram péssimos. O único refúgio era o seu quarto e os escritos sobre as aventuras da Menina Florzinha, que se intensificavam ainda mais.
Dona Ivone continuava sendo a diretora da escola. Sempre dizia que não aguentava mais a direção, mas sempre que havia eleições, candidatava-se e, por mais que o corpo docente e a equipe de apoio sofressem em suas mãos e a detestassem, sempre votavam nela, com receio de alguma mudança. Inclusive Ana Flor.
A diretora-adjunta, Isabel, muito pálida e raquítica, andava sempre encurvada, o que fazia com que os alunos e até professores e funcionários a chamassem de Vírgula. A Vírgula nunca resolvia nada. Toda vez que alguém precisava de alguma assinatura, podia ser a mais simples declaração, falava logo:
– Só a Ivone que pode assinar.
Dona Ivone não deixava barato. Toda reunião pedagógica ou conselho de classe, dizia, com veemência, na frente de Isabel:
– A minha adjunta é uma mosca morta, eu tenho que fazer tudo sozinha!
Entretanto, quando algo dava errado, afirmava que a culpa era de todos. A Vírgula ficava ainda mais encurvada ao ser rechaçada pela diretora-geral.
Entre o corpo docente da escola, havia a Helena, que se relacionava há quase dez anos com um homem casado, que dizia não poder largar a esposa porque ela era doente.
– Eles vivem como irmãos! – dizia Helena, orgulhosa.
De vez em quando, contava chorando que fizera um jantar especial para o seu amante e ele só aparecera dois dias depois, dizendo que a esposa tivera uma crise. Por diversas vezes, Helena jurou nunca mais vê-lo, mas sempre quando aparecia com um buquê de rosas e uma caixa de bombom, acabava cedendo.
Outra que sempre proferia lamúrias na sala dos professores era a Sônia, casada com um homem que vivia às suas custas. Enquanto trabalhava todos os dias, manhã e tarde naquela fétida escola, o malandro dormia até tarde, depois ia à praia ou à academia. O marido, além de tomar-lhe todo o dinheiro, ainda a agredia fisicamente quando não queria lhe satisfazer as vontades. De vez em quando, chegava na escola com um olho roxo, disfarçado por óculos escuros, dava desculpas esfarrapadas para justificar os hematomas, como quedas e acidentes domésticos.
A colega de trabalho com que Ana Flor mais se identificava, provavelmente, devido ao seu histórico de vida, era a Maria Aparecida que, aos quarenta anos, ainda era virgem, não havia casado e nem tido filhos. Filha única, dedicara a vida a cuidar de seus pais, já idosos, não recebia o devido valor pela renúncia, sempre humilhada por seus genitores, que a chamavam de solteirona, encalhada, sempre jogavam em sua cara o fato de não ter lhes dado netos.
Maria Aparecida, assim como Ana Flor, trancara a faculdade, só que o curso era de Matemática. Na ocasião, os pais lhe impuseram o trancamento para cobrir suas dívidas; aliás, estavam sempre endividados. Além de não ter concluído seu curso superior, era obrigada a ouvir que não tinha nada na vida. Devido a todos esses problemas familiares, de vez em quando, Aparecida entrava em depressão e precisava se licenciar da escola.
Outra figura emblemática era a Vania, que sempre confrontava a Dona Ivone. Quase sempre, em reuniões pedagógicas e conselhos de classe, fazia diversos questionamentos pertinentes, deixando a diretora vermelha e aos gritos. Quase sempre havia discussão. As outras professoras ficavam caladas, principalmente a Vírgula, que se encurvava ainda mais. Parecia ficar apavorada.
Dona Ivone, como sempre, dizia não aguentar mais aquela direção e avisou que se aposentaria. Como haveria eleições para a direção naquele ano, Vânia resolveu se candidatar, tendo em vista que o cargo ficaria vago. Dona Ivone, ao saber que a sua rival iria se candidatar, fez um enorme escândalo.
– Isso é traição! Vou convocar a comunidade! – dizia Dona Ivone, aos berros, no corredor da escola.
– Mas a senhora não disse que iria se aposentar? – disse-lhe uma servente.
– Mas isso não é admissível! Querem o meu lugar!
No último dia do prazo de inscrição para candidatura, Dona Ivone fez a sua inscrição, intimando a Vírgula a compor a sua chapa, que obedeceu, submissamente.
– É a chance que temos para mudarmos – dizia Vânia, em sua campanha à comunidade escolar.
Enquanto isso, Dona Ivone fazia ameaças veladas, principalmente às mais fracas, como Ana Flor:
– Não estou obrigando ninguém a votar em mim, mas depois não reclamem.
Chegou o tão esperado dia das eleições escolares e, mais uma vez, a chapa de Dona Ivone foi eleita com a maioria dos votos.
Ana Flor pensou em votar em Vânia, mas na hora H sentiu um enorme receio de Dona Ivone desconfiar de que não havia votado nela e sofrer represálias, mesmo porque a velha diretora sempre dizia que sabia quem votava e quem não votava nela. Apesar de todos reclamarem de Dona Ivone, o pretexto para votarem nela era unânime: já estavam acostumados, e poderiam ter problemas com uma pessoa de fora.
Vânia começou a sofrer perseguição por parte da direção e da comunidade escolar, principalmente da mãe do pior aluno da escola, que era uma apoiadora veemente de Dona Ivone; contudo, sempre fora a única que tivera coragem de enfrentar o despotismo e criticar a gestora frente a frente. Quando as colegas falavam mal da direção, logo Vânia respondia:
– Vocês votaram nela! Então devem se calar para sempre.
As professoras permaneciam caladas de tamanho pavor que tinham da autoritária diretora. A própria Ana Flor se questionava o porquê de tanto medo de sua parte e das restantes das colegas. Sentia raiva de si mesma pela sua enorme fraqueza e covardia, mas, infelizmente, não conseguia mudar o seu triste jeito de ser.
Diante do tamanho assédio moral que sofria, e percebendo que o corpo docente e a comunidade escolar não tinham coragem de proporcionarem a mudança, Vânia acabou pedindo remoção para outra escola e seguiu iniciando um mestrado na área de Educação.
A escola se deteriorava cada dia mais, assim como a casa e a família de Ana Flor.
NÃO PERCAM O CAPÍTULO DE AMANHÃ.
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Como a covardia paralisa as pessoas, mesmo sofrendo, se calam. Bem realista!
Os três pilares da vida em ruína.
Essa Ana Flor precisa ir nos Capuchinhos ou a um terreiro. Só Jesus na causa.