Por: Jorge Eduardo Magalhães
No dia seguinte, não fora trabalhar; sentira um enorme mal-estar. Na verdade, não era uma enfermidade física, mas algo que vinha de dentro, como se fosse uma ferida na alma, uma dor que não tivesse remédio, como se não existisse cura. E de fato não havia, a não ser deixar tudo para trás. Mas como?
Precisava se organizar para ir embora, abandonar tudo, sem olhar para trás. Sozinha em seu quarto, deitava-se em sua cama, buscava alguma solução, algum planejamento para poder ir embora para sempre. Pensar em uma outra escola para trabalhar e um novo bairro para viver.
Nem com a Menina Florzinha, sua personagem e válvula de escape, conversara mais e nem escrevera mais as suas aventuras. Aquele bairro, aquele lugar maravilhoso onde vivia a Florzinha, há muito tempo deixara de existir. Agora, tudo à sua volta eram ruínas de um passado maravilhoso.
Há muito tempo que não sentia amor pelos seus familiares, vivia sob o mesmo teto apenas por falta de iniciativa. Também perdera todo o carinho pelo bairro, pela sua casa, que na infância, quando fora morar lá, parecia um sonho, assim como a escola em que fora alfabetizada e agora lecionava. Tudo ao seu redor ruíra bruscamente.
Depois de uns três dias prostada, resolveu se levantar da cama e dar uma volta. Antes de sair, não resistiu e abriu, lentamente, o quarto de sua irmã, que dormia ao lado da filha e do namorado. Os três estavam nus. Sua mãe dormia em frente à TV com a boca aberta. Um filete de baba escorria ao canto. Roncava feito um porco.
Ana Flor sentiu um enorme embrulho no estômago ao mirar aqueles “lixos humanos”. Teve o impulso de cortar a garganta dos quatro. Chegou a pegar uma faca dentada de pão, mas, ao estar em frente à mãe, desistiu. Não por remorso, por amar seus familiares, mas por saber que destruiria a sua vida. Colocou a faca no lugar em que estava e saiu.
Andou sem rumo pelas ruas. Do outro lado da estação, observou o prédio em ruínas da antiga universidade onde começara seus estudos. Ali havia morrido parte de seus sonhos. Tanto José Roberto quanto a falência da instituição enterraram de vez os seus projetos de se formar em Pedagogia.
A antiga fábrica de açúcar, que seu pai a levara tantas vezes, também estava lá abandonada. Sentia uma tristeza em seu coração. Como se estivesse torturando a si mesma nessas recordações. Ao passar por esses lugares, parecia ouvir os ruídos e os felizes sons de um passado que lhe soava distante.
Pegou o trem e acabou parando em frente à Escola Normal onde havia se formado professora. A escola, pelo menos, ainda estava intacta, apesar dos problemas do ensino público. Durante alguns minutos, contemplou o antigo prédio e recordou os bons momentos em que era professoranda.
Passou no Mercadão para olhar o comércio popular e, depois, foi fazer um lanche no shopping, nas proximidades. Sair um pouco daquele lugar sufocante, repugnante, dava-lhe um momentâneo alívio em seu coração. Esquecia-se um pouco do seu ambiente familiar e de trabalho.
Até naquele tumultuado bairro comercial parecia que o ar era mais puro e respirável do que em sua casa e em seu bairro. Não sentia a mínima vontade de retornar ao seu lar, se é que poderia chamar aquilo de lar. Quanta angústia, quando agonia. Vontade de desaparecer.
Estava cansada e, apesar de não ter vontade, precisava voltar para casa. Pegou o trem, subiu a passarela. Novamente, teve o impulso de se jogar; entretanto, conteve-se. Não poderia dar esse gosto às pessoas que tanto a maltratavam e a desmereciam. Precisava dar a volta por cima. Mas não sabia como.
Foi caminhando lentamente em direção à sua casa. À proporção que se aproximava, sentia uma taquicardia em seu peito. O mal cheiro começava a se intensificar cada vez mais. Ao chegar ao portão, teve o pressentimento de que algo de diferente, atípico, estava acontecendo.
Entrou lentamente. Sentia-se tensa, com o temor de presenciar algo ainda mais desagradável do que o triângulo amoroso. Novamente sentiu algo diferente na atmosfera, ao entrar portão adentro. No espaço entre o quintal e a casa, desviando dos gatos, teve receio do que poderia ver.
Ouviu risos na sala e uma voz familiar. Não acreditava no que via, sua prima Sandra estava na sala, conversando, descontraidamente, com toda a sua família. Todos os membros da família, inclusive Wesley, olhavam fascinados para Sandra. Ana Flor percebeu que, embora estivesse mais velha, ainda era bonita. Ao perceber a presença da prima, deu um enorme sorriso:
– Prima! Há quanto tempo!
– Oi, Sandra… – respondeu Ana Flor, sem jeito.
– Vem aqui dar um abraço.
Sandra se levantou do velho sofá e foi em direção a Ana Flor que correspondeu ao abraço, com certo distanciamento. Enquanto se abraçavam, Dona Evarista ressaltava com fascinação:
– Olha só como a Sandrinha está bonita!
Margarida completou:
– Parece que para ela o tempo não passa, não é mesmo?
– Ela é linda! – disse Brenda.
– Se é! – completou Wesley, quando Margarida e a filha olharam com ar de reprovação.
Dona Evarista não perdeu a oportunidade de ser sarcástica:
– Vocês duas têm a mesma idade, e olha como você está acabada em relação à sua prima.
Ana Flor observou os sorrisos doentios de seus familiares e o constrangimento de Sandra.
– Como você está, prima? – perguntou Sandra, tentando disfarçar o mal-estar.
– Estou indo.
– Levando a mesma vidinha – completou Dona Evarista.
Ana Flor fingiu não ouvir a mãe.
– Voltou para ficar?
– Ainda não tenho previsão para voltar. Eu e meu marido alugamos um apartamento em Copacabana.
– Ela é casada com um italiano – disse Brenda, fascinada.
– O marido dela é diretor de cinema.
Mais uma vez, Ana Flor tentou ignorar as falas.
– E por que voltaram?
– Viemos para expandir nossos negócios. Meu marido veio rodar um filme aqui no Rio.
– E a Sandrinha disse que eu vou poder trabalhar no filme dela! – disse Brenda, encantada.
– Vamos virar estrelas! – enfatizou Margarida.
Ana Flor ia perguntar sobre esses filmes, quando foi interrompida por Dona Evarista:
– Está vendo como tua prima é bem-sucedida?! Foi morar no exterior, casou-se bem, fez uma carreira, enquanto você nunca saiu daqui, não se casou, não teve filhos.
– Que é isso, titia. Eu também não tive filhos.
– Mas construiu uma carreira brilhante.
Mais uma vez, todos ficaram em silêncio durante alguns segundos. Tentando quebrar o constrangimento, Sandra observou:
– Pelo que vejo, a senhora continua gostando dos Refrigerantes Miquelina, não é titia?
– Minha bebida predileta! – respondeu Dona Evarista, bebendo um Miquelina Laranja no gargalo.
– Minha mãe não para de beber os refrigerantes – disse Ana Flor.
– Esses refrigerantes me trazem boas recordações, dos tempos que eu era dançarina do Adilson Show.
– Tenho todos os programas gravados.
Sandra continuou:
– Por acaso, vamos comprar os direitos da marca Miquelina, pois esse produto tem um valor sentimental para mim.
– Vai ter refrigerante de graça para mim? – perguntou Dona Evarista.
– Claro, titia.
– Mas será que vale a pena? Esses Refrigerantes Miquelina praticamente é uma fábrica de fundo de quintal.
– Cale esta boca imunda, não vomite um sacrilégio deste! – disse Dona Evarista, com ódio.
– Na verdade, apesar de ser um valor sentimental, vamos expandir a marca para outras atividades.
– Como minha sobrinha é inteligente.
– Inclusive, quero incluir esta casa em nossos investimentos.
Ana Flor achou estranha aquela ideia.
– Mas o que pretende fazer?
– Logo vocês irão saber.
– Que maravilha! – disse Brenda, sonhadora.
– Será que vai aumentar nosso quarto? – perguntou Wesley.
– Cala essa boca! – gritaram Margarida e Brenda ao mesmo tempo.
– Será que vale a pena? Vai dar muito trabalho reformar, limpar esta casa, que está caindo aos pedaços.
– Você sempre pessimista! – gritava Dona Evarista – por isso que não tem nada na vida.
– Na verdade, não pretendo reformar a casa, vamos mantê-la assim, do jeito que está.
– Não entendi.
– Você nunca entende nada.
– Depois eu explico melhor.
– Ela é difícil de entender mesmo. – disse Dona Evarista, provocando gargalhadas. Sandra ficou séria.
Tentando não discutir, Ana Flor pediu licença à prima para tomar uma banho e descansar. Ana Flor ficou sem entender e parecia não ouvir mais a conversa entre a prima e seus familiares, todos inebriados com a presença de uma pseudocelebridade.
NÃO PERCAM O CAPÍTULO DE AMANHÃ.
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que familia de bosta
Essa Ana Flor nasceu pra sofrer, coitada!