Por: Jorge Eduardo Magalhães
Ao despertar, Sandra já havia ido embora; entretanto, deixara um rastro de fascinação na casa, o qual seus moradores permaneceram inebriados mesmo depois da prima estar ausente. Todos estavam estonteados com a sua beleza e energia imensamente radiante.
Ana Flor refletia sobre a influência que a família de sua Tia Evilásia transmitia e continuava emanando a todo o pessoal de sua casa, desde quando era menina até a atualidade, mesmo restando apenas uma representante do clã familiar da tia. Nunca conseguiu entender o motivo de toda aquela obsessão, principalmente por parte de Dona Evarista.
Aquela semana, em sua escola, foi muito complicada. Dona Ivone havia convocado uma reunião geral com professores, funcionários e responsáveis para apresentar a Liga de Mães, idealizada por Joãozinho do Posto, futuro candidato a vereador e liderada pela mãe do aluno que agrediu a Vírgula. Ao se deparar, frente a frente, com sua agressora, Vírgula ficou ainda mais encurvada. A líder do grupo, ou presidente da Liga das Mães, como se autodenominou, esboçava um sorriso de satisfação. O aspirante a candidato proferia seu discurso:
– Estou aqui para lutar pela educação, principalmente pela nossa escola, há décadas, formando cidadãos em nosso bairro. Para esta missão, aqui na Liga das Mães, convoco esta mulher, mãe, líder nata para embrenhar nesta ardorosa luta em prol da nossa escola e do futuro das nossas crianças.
Todos bateram palmas, inclusive, o corpo docente, sem muita vontade. Dona Ivone estava radiante.
A Vírgula quase desapareceu na cadeira em que estava sentada. Dona Ivone não desmanchava o sorriso da boca. As professoras presentes ficaram em silêncio, só mostrando-se indignadas na sala dos professores, na ausência da diretora. Quando Dona Ivone entrou na sala dos professores, todas se calaram.
Ana Flor estava alheia a tudo e a todos, apenas pensando na estranha visita da prima e o tal investimento naquela casa caindo aos pedaços que prometera, para o encanto de seus familiares. Tinha algo de muito estranho naquilo tudo. Alguma coisa não estava batendo.
Daquele dia em diante, Dona Ivone deu plenos poderes à mãe agressora dentro daquela unidade escolar. A mulher passava o dia inteiro na escola, controlando, inclusive, o horário das professoras. Dizia-se representante do futuro vereador Joãozinho do Posto e tratava a todos com arrogância, inclusive a diretora-adjunta, a qual já havia agredido fisicamente.
Certa vez, apenas porque uma professora novata, muito consciente, liberou a turma dois minutos mais cedo, a mãe agressora resolveu tirar satisfação com a professora e começaram a discutir. A professora foi se queixar com a diretora, que logo foi em defesa da mãe:
– Ela é muito eficiente, presidente da Liga das Mães. Você é que está nervosa. Precisa se controlar.
Quando a professora foi ver, a mãe e Dona Ivone estavam rindo na direção. A professora, que era nova na escola, percebendo o clima da unidade escolar, logo pediu remoção. A “presidente” da Liga das Mães se vangloriou de ter expulsado uma professora da escola.
A líder das mães vangloriava-se aos quatro cantos como “o braço direito de Joãozinho do Posto”, e Dona Ivone o recebia com um sorriso que nunca desmanchava da boca, tratando-o por “meu futuro vereador”. Todos estavam convictos de que Joãozinho do Posto venceria nas próximas eleições, por isso, faziam-lhe pedidos antecipados e ele prometia atender a todos.
Ana Flor parecia anestesiada em relação a tudo aquilo. Apesar da volta da prima parecer um meio de ascensão social, com a proposta de ajuda financeira, tudo aquilo não lhe convencia. Algo de muito podre estava para acontecer. Sabia que a presença da família de sua Tia Evilásia sempre ocasionava na desgraça de seu lar.
Após o término das aulas, seu corpo a levava para casa. Era algo quase que automático. Já não hesitava mais em retornar. Era como se fizesse tudo como um autômato. Sempre esperava o pior. Aliás, o pior já fazia parte do seu monótono e triste cotidiano.
Tentou entrar em casa, direto para o seu quarto, mas, ao passar pela sala, verificou o estoque de Refrigerantes Miquelina, no meio da gataria. Dona Evarista esbanjava felicidade, com uma garrafa de dois litros de Guaraná Miquelina em uma mão e de Miquelina Laranja na outra. Dava um gole em cada uma.
– O que é isso? – perguntou Ana Flor.
– Estou no paraíso! – dizia Dona Evarista com um olhar perdido.
– O que significa isso?
Dona Evarista permanecia extasiada.
– A felicidade.
– O que significam todos esses refrigerantes?
Nesse momento, Margarida surgiu na sala, também radiante.
– A Sandrinha e o marido compraram a marca Miquelina e a fábrica de refrigerantes que já estava quase falindo.
– Mas por que ela fez isso?
– Porque ela tem algo que você não tem, visão do futuro! – espetou Dona Evarista, com refrigerante escorrendo no canto da boca.
– Onde está a Brenda?
– Saiu com a Sandra. – disse Margarida.
– Saiu para onde?
– Minha sobrinha é muito generosa, além de me dar de presente esse punhado de Refrigerantes Miquelina, levou a Brenda no shopping para renovar o seu guarda-roupas. Que maravilha!
– Isso está soando muito estranho.
– Estranha é você. Olha só essa cara no espelho! – Dona Evarista soltou uma gargalhada cruel.
Ana Flor respirou fundo. Margarida tentou explicar:
– Olha, eu não entendo muito bem sobre isso, mas a nossa prima disse que ela e o marido compraram a fábrica, a marca e querem expandir o nome com uma produtora de filmes.
– Produtora?
– Sim. Querem fazer um filme aqui na nossa casa.
As palavras de Margarida deixaram Ana Flor ainda mais confusa. Teve uma sensação macabra, seu coração gelou.
– Mas como assim?
– Foi mais ou menos isso que ela falou.
– Mas isso não faz sentido.
– Não faz sentido por quê? – perguntou Dona Evarista, com um tom agressivo. Parecia ter ódio da filha.
Ana Flor fingiu não perceber a ira da mãe e prosseguiu:
– Ora, mamãe, raciocina: porque esta casa é um verdadeiro lixo.
– Lixo é você! Maldita a hora que te pari.
– Por que ela iria querer fazer qualquer coisa que fosse aqui?
– Isso é verdade – indagou Margarida.
– Vocês duas não têm noção de nada. Com certeza a Sandrinha sabe o que está fazendo.
– Isso não está batendo.
– Você é que não está batendo bem. – Dona Evarista virou o resto da bebida goela abaixo, bebendo no gargalo.
– Preciso falar com a Sandra. Alguém tem o contato dela?
– Não pense que a Sandrinha tem a tua vidinha!
– Vou falar com ela, ninguém irá me impedir.
– Ela é muito ocupada! Não a incomode com bobagens.
– Isso não é bobagem!
– Não perturba, sua mondronga!
– No mínimo, ela precisa dar uma explicação sobre o que realmente pretende conosco.
– Ela não lhe deve satisfações.
– De qualquer maneira, o que vamos perder? Piorar é que não vai – justificou Margarida.
– A Sandrinha é muito generosa.
– Toda essa generosidade está muito estranha.
Nenhuma das duas lhe deram ouvidos. Estavam tão fascinadas com a perspectiva de alguma mudança que mantinham um olhar distante. Margarida até havia apresentado alguns instantes de lucidez. Mas voltara ao seu estado letárgico, ao lado da mãe que se deliciava com os mais variados sabores dos Refrigerantes Miquelina, cujos engradados estavam estocados nas mais diversas partes da casa, entre tralhas e felinos. Realmente não tinha jeito.
Ana Flor olhou tudo ao seu redor. Respirou fundo. Percebeu que não adiantava discutir com aquelas duas insanas. Depois teria uma conversa com a Sandra para lhe pedir algum esclarecimento. Driblou as quinquilharias acumuladas e os gatos e foi tomar seu banho para tentar descansar.
Demorou mais do que o normal debaixo do chuveiro, tentando se livrar de toda aquela imundície. Não entendia muito bem o porquê, mas naquele dia, sentia-se ainda mais suja, sua família parecia apodrecer cada vez mais. Sentia a putrefação naquela sufocante atmosfera.
Do lado de fora, ouvia os risos e as gargalhadas, em um misto de escárnio e euforia das duas. Suas lágrimas se misturavam com as águas do chuveiro. Pensava em fugir ou de dar um fim à própria vida.
Em seu quarto, não conseguiu dormir. Tinha o pressentimento de que o pior ainda estava por vir.
NÃO PERCAM O CAPÍTULO DE AMANHÃ.
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