Por: Jorge Eduardo Magalhães
Ana Flor não conseguiu, de jeito nenhum, entrar em contato com a prima. Tentou conseguir o seu número, mas não encontrou. Precisava, de qualquer forma, obter alguma explicação acerca de toda aquela boa vontade com sua família e esse filme que ela disse que faria em sua casa; não existia lógica naquilo.
Tinha a esperança de que Sandra estivesse só de passagem pelo Rio de Janeiro e quisesse presentear os parentes pobres e o tal filme fosse somente uma forma de criar uma chama de esperança em seus corações. Não havia comprado nenhuma fábrica de refrigerantes, nem a marca Miquelina. Aquilo tudo não passaria da sua mania de grandeza, característica que viera da infância; Sandra só havia comprado muitos engradados para Dona Evarista. Torcia para que fosse somente isso.
Também não conseguira se encontrar com a prima em sua casa. Na ocasião em que Sandra saíra com Brenda para fazer compras, só voltaram no dia seguinte, quando Ana Flor estava na escola e, ao retornar do trabalho, apenas vira os mais inúmeros presentes que não só Brenda ganhara, mas também toda a família. Margarida e Brenda ganharam muitas roupas, a maioria vulgares, como era de gosto das duas. Wesley também ganhou bonés e blusões, tudo de marca. Dona Evarista ganhou canecas e adesivos dos Refrigerantes Miquelina. Seus olhos brilhavam ao contemplar os presentes com a logomarca de seu refrigerante preferido.
Ficou horrorizada com a vulgaridade que mãe filha ganharam e mostravam uma para a outra. Dona Evarista ainda completava:
– Minha sobrinha tem muito bom gosto.
Brenda confirmava, eufórica:
– Tem mesmo. Imagina que me ajudou a escolher tudinho, para mim e para a minha mãe.
– Adorei! – completava Margarida.
Ana Flor achou ainda mais estranho quando percebeu que mãe e filha haviam ganhado lingeries bem sensuais. Por que Sandra havia comprado aquilo para as duas? Qual era a sua motivação? Sentia uma inexplicável taquicardia com aquilo tudo. Um pavor, como um terrível presságio.
Os quatro nem perceberam quando Ana Flor entrou em casa, de tão fascinados que estavam com todos aqueles presentes. Mais um vez, Ana Flor teve uma sensação ruim. Aqueles presentes emanavam uma enorme energia negativa, não sabia explicar muito bem o que sentia; contudo, ainda tinha esperança de que a prima voltasse para a Itália com o marido e demorasse muito a voltar. Aquilo poderia ser só uma forma de fazer média coma tia e as primas.
Aquela semana na escola fora infernal. Com a presença da Liga das Mães, o ambiente ficou ainda mais tenso e caótico. As mães, chefiada por sua presidente, praticamente, assumiram a liderança e as diretrizes da escola, gritando com professores e funcionários nos corredores, inclusive, tirando sua autoridade diante dos alunos.
Se antes os alunos já não iam mais uniformizados para a escola, a partir da presença das mães, o uniforme praticamente deixou de existir. Entravam de qualquer jeito e faziam o que queriam na escola. As professoras, serventes e demais funcionários eram desacatados o tempo inteiro. Até a diretora-adjunta era alvo do desrespeito. A única imune a tudo isso, era Dona Ivone, que recebia as mães e o aspirante a vereador com um sorriso forçado, que nunca se desmanchava.
Houve uma denúncia acerca dos desmandos de Dona Ivone e de suas pupilas da Liga das Mães. Foi à unidade escolar uma representante da Secretaria de Educação para apurar as denúncias. Houve rumores de que alguém, lá de dentro da Secretaria, avisou Dona Ivone com antecedência e ela organizou um mutirão para limpar a escola e mandou as merendeiras fazerem uma comida especial. Milagrosamente, surgiram uniformes completos novos.
Em relação à Liga das Mães, pediu que não aparecessem na escola naquele dia. Ao ser questionada pela representante da Secretaria de Educação sobre a atuação dessas mães, Dona Ivone disse que eram apenas voluntárias que se ofereceram a auxiliar a escola e que uma delas havia tido um pequeno incidente com uma professora, bem problemática, que nem trabalhava mais lá.
Enquanto Dona Ivone recebia a funcionária, os burburinhos corriam soltos nos corredores e na sala dos professores. Apurados os fatos e nenhuma aparente irregularidade constatada, a representante da Secretaria de Educação fez os procedimentos burocráticos e se retirou.
No dia seguinte, Dona Ivone ordenou que as aulas terminassem na hora do intervalo para fazer uma reunião com toda a comunidade escolar em uma sala em que improvisaram um auditório. O clima estava tenso. Dona Ivone estava acompanhada das representantes da Liga das Mães, todas com os braços cruzados e com ódio em seus olhares para as professoras.
Com um tom passivo-agressivo, Dona Ivone iniciou a reunião, já com um clima visivelmente tenso.
– Estamos aqui nos reunindo porque a Secretaria de Educação recebeu uma denúncia sobre a escola, em relação a mim e a Liga das Mães.
Houve um silêncio por alguns instantes e as professoras entreolharam-se. Dona Ivone continuou.
– Estou muito decepcionada com quem fez isso. Dediquei grande parte da minha vida a esta escola e agora sou apunhalada pelas costas.
– Um absurdo! – completou a presidente da Liga das Mães.
Depois de simular enorme mágoa e tristeza, Dona Ivone prosseguiu na sua representação:
– Só quero lhes dizer que, apesar de estar muito ferida e magoada, essa pessoa que me denunciou tem meu perdão, pois sou uma pessoa muito boa, chego a ser boba por ter o coração tão mole. As representantes da Liga das Mães fizeram um burburinho. A chefe olhava para todos os lado, de uma forma agressiva.
– A senhora é um anjo, Dona Ivone. – disse uma delas, em tom de bajulação.
– Toda a comunidade te ama! – completou outra.
– E vamos dar uma lição em quem fez essas denúncias! – Disse a presidente, com veemência.
Dona Ivone suspirou, fez uma pausa:
– Digo ainda que sei quem foi que fez essas falsas denúncias. A traidora está aqui nesta sala.
Começaram os cochichos. Todas as professoras ficaram temerosas de serem acusadas. A presidente da Liga das Mães olhou para todos os cantos da sala e apontou para a Vírgula.
– Foi ela.
Ao ser acusada, a Vírgula se estremeceu e tentou se esconder, como uma tartaruga no casco. As outras professoras ficaram aliviadas por estarem livres da acusação, ao mesmo tempo em que se sentiam penalizadas por todo o constrangimento que a Vírgula estava passando.
– Eu não. Não fui eu, eu juro.
Começou a receber xingamentos.
– Que decepção. Minha diretora-adjunta me apunhalando pelas costas. Que mal eu fiz para merecer isso tudo?
– Que coisa! – disse uma das mães.
– Estou pensando até em sair da direção e pedir a minha aposentadoria, pois não aguento mais tanta ingratidão. Doei a minha vida inteira para esta escola, abri mão de final de semana, de feriado, quase um sacerdócio, para receber ingratidão como recompensa. Para mim, chega.
Nesse momento, as mães diziam em coro:
– Fica! Fica!
– Já que a comunidade escolar insiste, permanecerei na direção.
Recebeu calorosos aplausos e a presidente da Liga das Mães olhava a Vírgula com ódio.
– Sua vaca! Você me paga.
Teve o impulso de agredir a Vírgula, que se esquivou. A presidente da Liga das Mães foi contida pelos presentes, inclusive por Dona Ivone que, de forma cínica, defendeu sua adjunta.
– Não agride ela. Não vale a pena!
– Eu vou arrebentar essa corcunda.
Vírgula caiu em prantos. Quando todos conseguiram conter a líder das mães e os ânimos se acalmaram, Dona Ivone fez o seu discurso, sempre com a sua conhecida falsa voz bondosa:
– Não quero violência aqui. Eu sei que a minha adjunta errou. Entendo a raiva de vocês, sei que vocês estão doidas para partir para cima dela, mas, por favor, peço que a perdoem.
A Vírgula nem se defendia nem assumia a autoria da denúncia, apenas chorava em seu canto, encurvando-se ainda mais, enquanto as mães, lideradas por sua presidente, esbravejavam contra ela, e Dona Ivone conseguia posar como uma gestora bondosa e compreensiva.
– Confesso que estou muito decepcionada contigo e também bastante magoada com a traição, mas quero te dizer, de coração, que não guardarei rancores e que tem o meu sincero perdão.
Ana Flor se sentiu incomodada, enojada com todo aquele cenário e a inércia das colegas diante de toda aquela injustiça. A sua própria omissão incomodava a si mesma. Sem falar com ninguém, levantou-se e se retirou daquele ambiente que lhe soava de forma sufocante.
Caminhou pelas ruas do bairro, questionando-se por que a Vírgula se mantinha como diretora-adjunta ao lado daquela mulher horrível que era a Dona Ivone, e o motivo pelo qual, ela mesma ainda continuava há tantos anos trabalhando naquela escola. Certamente, a pior da região, em todos os sentidos.
NÃO PERCAM O CAPÍTULO DE AMANHÃ.
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