Por: Jorge Eduardo Magalhães
Dormiu umas duas noites em um hotel barato. Finalmente conseguiu descansar, com sonos muito bem dormidos, como há muito tempo não tinha. Não apareceu na escola. Sentiu-se cansada, indisposta. Talvez uma breve febrícula. Depois de faltar mais de dois dias, decidiu se levantar e ir trabalhar. Não importava se levaria falta, se descontassem do seu salário, pois, em breve, tudo aquilo teria um fim. Um trágico e poético desfecho.
Ficou mais de meia hora debaixo do chuveiro. Apesar de estar longe de ser um hotel de luxo, pelo menos o quarto era limpo. Era uma maravilha usar um banheiro que não era cheio de latas, caixas de papelão, entre outros entulhos, que sua família costumava acumular por toda a casa, com exceção de seu quarto. Fora que, raramente, davam descarga. Novamente, ao se lembrar da sua família, da sujeira da sua casa e da escola em que trabalhava, chegou à conclusão de que era necessário dar um fim àquilo tudo, purificar os locais.
Lembrou-se de que, certa vez, ao entrar no Bar do Toninho para comprar os refrigerantes de sua mãe, viu o dono do estabelecimento oferecendo para um conhecido um velho revólver calibre trinta e oito. Passou por sua mente comprar um revólver, atirar em todos os seus familiares. Se Sandra estiver lá com marido e equipe, também entrariam na lista. Depois, iria até a sua escola, atiraria na Dona Ivone, na presidente da Liga das Mães e no filho dela, já repetente, atrasado uns dois anos e bem abusado, por achar que a mãe tinha poder. Após eliminar essas ervas daninhas, tiraria sua própria vida, com um tiro no ouvido. Não, tinha que ser algo mais glamuroso, como atear fogo nas vestes. Também não. Seria uma cena linda, seu corpo ardendo em chamas, mas muito doloroso. Depois de matar seus desafetos na escola, tiraria a roupa, cortaria os pulsos e exibiria a todos o sangue escorrendo (vira isso em algum filme que não se recordava do nome). Ou então, também nua, ingeriria veneno na frente de todos. Cometeria o sórdido ato, ainda naquela semana.
Estava saindo de seu quarto, quando passou pelo corredor um homem alto, moreno e muito bonito. Deu-lhe bom dia. Sentiu algo dentro de si, seu coração palpitou. O desconhecido entrou no quarto ao lado do seu, fechando a porta lentamente, olhando para ela. Ana Flor sentiu um calafrio, mas seguiu em frente. Estava disposta a voltar para casa, mas o aparecimento daquele desconhecido a instigara a ficar mais um dia ou uns dias naquele hotel. Sairia para trabalhar e voltaria. Depois pensaria em cometer a carnificina, planejando tudo, minuciosamente. Precisava eliminar aquelas pessoas que lhe faziam mal.
Ao chegar na escola, deu de cara com a Dona Ivone que, com a sua voz macia, foi lhe saudando com ironia:
– Ana Flor! Há quanto tempo! Mas pode deixar que eu irei abonar as tuas faltas desses dias, pois sei que você tem um monte de problemas com a tua família! Sabe que eu tenho um coração de ouro, não sabe?
– Claro que sei, Dona Ivone – respondeu Ana Flor, em um misto de ironia e desânimo.
– Como vai a Evarista?
– Indo.
– Mande um abraço para ela.
– Pode deixar.
– Na hora do intervalo, por favor, não deixe de descer porque quero fazer uma reunião com vocês.
A palavra “reunião” soou para Ana Flor como uma palavra maldita, pois odiava as falas da Dona Ivone que eram só para fazer sua autopromoção, e não tinha nenhum conteúdo de valor. Preferia mil vezes dar aula o dia inteiro a aturar as falas da diretora.
Cinco minutos após todas as docentes descerem para a sala de professores, não deu tempo nem de tomarem um café ou conversarem algo. Dona Ivone entrou para dar a sua breve e enfadonha reunião, repetindo aquele discurso que todos já estavam cansados de ouvir.
Dona Ivone começou:
– Convoquei esta reunião para dizer que ainda estou muito magoada com a traição de minha adjunta; confesso que cheguei a redigir uma carta, pedindo exoneração do meu cargo e estava decidida a dar entrada na minha aposentadoria; entretanto, a comunidade insistiu para que eu continuasse meu trabalho e minha gestão, que apesar das inúmeras críticas e traições, vê que venho me dedicando arduamente.
Pairou um silêncio durante alguns instantes. As professoras se entreolharam. Dona Ivone prosseguiu:
– Saibam que estou disposta a perdoar a minha adjunta. Vocês perceberam que as mães estavam indignadas, e eu evitei que agredissem a Isabel. Sabem por quê? Porque tenho o coração de ouro. A Isabel não resolve nada, vocês sabem disso. Apesar dos pesares, ainda a deixo como minha adjunta porque ela é sozinha, não tem ninguém. Precisa da gratificação de diretora para ajudar a pagar aquele apartamento financiado em que mora. Tenho muita pena dela, embora não mereça. Infelizmente, ela está de licença-médica pela psiquiatria, mas quando voltar, continuará no cargo. Mesmo não fazendo falta, porque ela e nada são a mesma coisa, nunca vi uma adjunta tão inútil e inoperante, mas tenho pena dela. Por isso, organizei esta reunião para comunicar a vocês que, contra minha vontade, mas a pedido da comunidade, permanecerei na direção desta escola que tanto amo.
O constrangimento na sala era intenso e coletivo. Ana Flor, ao mesmo tempo em que sentia pena da Vírgula, também lhe nutria certo desprezo, devido ao fato de se submeter a todas as humilhações somente para permanecer no cargo e ganhar aquela gratificação miserável. Dona Ivone, fingindo não perceber o mal-estar, prosseguia em seu discurso:
– Por isso, vamos passar uma borracha nisso tudo e continuar a nos dedicar à nossa escola! Quero que sejamos uma equipe e que aqui seja uma casa de família, como sempre foi.
Por alguns instantes, Ana Flor recordou dos seus tempos de primário, naquela mesma escola, quando sua mãe trabalhava como servente. Antes tudo era diferente, a escola era limpa, organizada. Aquela mulher, bem à sua frente, era uma das responsáveis pelo sucateamento daquela unidade escolar. Sua presença lhe causava repulsa, desprezo, ódio, principalmente quando proferia seus discursos sórdidos de autopromoção e pseudobondade.
Bateu o sinal e as professoras buscaram suas turmas. Entre si, cochichavam, criticando as atitudes e o discurso repetitivo da diretora. Ana Flor sentia um enorme desprezo pela covardia das colegas que só falavam pelas costas. Ela pelo menos se calava.
Na verdade, Ana Flor estava cada dia mais enojada daquele contexto em que vivia. Tudo aquilo lhe motivava mais para executar a sua radical decisão. Estava decidida: ainda naquela semana, daria fim a todo aquele caos. Uma carnificina em seu trabalho e ambiente familiar. A Isabel, vulgo Vírgula, sempre humilhada, martirizada, motivo de chacota de toda a comunidade escolar, certamente, seria a maior beneficiada. Finalmente, ficaria livre de suas maiores algozes. Aquele ser pequeno e desprezível sentiria um pouco de alívio.
As eleições se aproximavam. Ouviu passar na rua um carro de som, tocando o jingle da campanha para vereador de Joãozinho do Posto. Olhou pela janela e a presidente da Liga das Mães estava liderando o grupo que trabalhava para o candidato com bandeirinhas. Todos no bairro, principalmente Dona Ivone, acreditavam que Joãozinho do Posto seria eleito, ao contrário de outro candidato, Carlos da Farmácia, que tentava conquistar votos dando amostras grátis de remédios, mas, segundo os comentários populares, não conseguia tanto êxito quanto Joãozinho. Certamente, Joãozinho conseguiria uma vaga na Câmara Municipal para deleite de Dona Ivone e a presidente da Liga das Mães.
Ana Flor pensou em incluir Joãozinho do Posto como uma das suas futuras vítimas. Estava tudo planejado. Voltaria ao hotel, só para tomar mais um banho, descansaria um pouco. Também queria saber quem era aquele misterioso hóspede que a cumprimentara. Depois tentaria comprar um revólver e munição e, finalmente, no dia seguinte, colocaria o seu plano em prática.
Não poderia esquecer da navalha de barbeiro para, depois de cometer a carnificina, cortar os pulsos bem diante da comunidade escolar, totalmente nua. Imaginava a linda cena: exporia os pulsos com o sangue descendo pelos braços, sem nenhuma roupa. Os curiosos não saberiam se prestariam atenção a isso ou a sua nudez. Só faltaria uma música clássica de fundo para deixar a cena mais intensa, ainda mais marcante.
Ficava arrepiada só de pensar em tudo que faria. Sentia um orgulho de si mesma por ter criado coragem de realizar aquilo tudo. Um projeto antigo de limpar, de higienizar todo o ambiente e depois tirar a própria vida. Sentia-se como um mártir, uma heroína que proporcionaria uma purificação. Inicialmente, ao colocar esse antigo projeto em prática, todos a veriam como uma louca, uma assassina desequilibrada que, após atirar em inocentes, deu fim à própria vida; todavia, um dia, poderia ser até dentro de cem anos, a história faria justiça e, talvez, tivesse até um busto no bairro, afinal, livraria a sociedade daquelas criaturas desprezíveis.
Finalmente bateu o sinal. Naquele dia, as horas, os minutos, os segundos pareciam demorar mais a passar. Desceu com as crianças e saiu sem se despedir de ninguém. Ficou na dúvida se iria primeiro ao bar do Toninho para tentar comprar uma arma ou se passava antes no hotel para tentar se aproximar daquele misterioso hóspede, mas estava decidida a colocar seu plano em prática no dia seguinte. Antes de ir embora, deu uma espiada no gabinete da direção, onde Dona Ivone conversava com a presidente da Liga das Mães. Aquele era um dos últimos momentos daquelas duas desgraçadas. Como as odiava!
– De amanhã não passa! – disse para si mesma.
NÃO PERCAM O CAPÍTULO DE AMANHÃ.
Acessem meu blog: http://jemagalhaes.blogspot.com
Adquiram meu livro UMA JANELA PARA EUCLIDES
editorapatua.com.br/uma-janela-para-euclides-dramaturgia-de-jorge-eduardo-magalhaes/p
Que suspense! Muito boa narrativa!
A Ana Flor está meio desequilibrada