Por: Jorge Eduardo Magalhães
O seu quarto era o único lugar limpo da casa. Era, justamente, o local onde Ana Flor se trancava para ficar concentrada em seus pensamentos. O seu refúgio. Ali, deitada em sua cama, olhando para o teto, perdida em seus pensamentos, começou a recordar os bons tempos de sua infância e parte da adolescência. Um dia, tudo já foi diferente, pensava.
Recordou-se de quando ainda era criança, tinha uns seis anos de idade e Margarida, quatro. Saíram do conjunto habitacional onde viviam na Penha e se mudaram para a Piedade. Augusto, seu pai, havia feito uma negociação com os antigos proprietários da casa e conseguiu comprá-la. Ficava mais perto da fábrica de açúcar em que trabalhava fazendo a manutenção das máquinas.
Seu Augusto era muito cuidadoso: no enorme quintal da casa, fez um balanço para ela e a irmã brincarem, um laguinho com um pequeno chafariz e um belo jardim com aromáticas flores. Sua casa parecia um sonho de tão bem cuidada, com três quartos, para o casal e cada um para ela e sua irmã.
Todos ficaram muito felizes com a mudança, principalmente Ana Flor e Margarida, que eram crianças e tinham espaço suficiente para correr e brincar. D. Evarista que, às vezes, ficava pensativa, distante, lembrando de Evilásia, sua irmã, que ainda morava no conjunto habitacional, com o marido irresponsável e a filha Isabel. Naquele tempo, Evilásia ainda não tinha Carlinhos, seu filho caçula.
Recordou-se de que, assim que se mudaram para aquela casa na Piedade, mesmo com pouca idade, o imponente prédio da universidade, do outro lado da linha férrea, chamou sua atenção e perguntou:
– O que é aquilo ali, papai?
Seu Augusto, emocionado com a ingenuidade da filha, respondeu:
– É uma universidade, minha filha. E quando você crescer, faço questão de que você e tua irmã estudem ali. Terão todas as oportunidades que eu não tive.
No início, não entendeu muito bem a finalidade de uma universidade, mas queria estudar lá para deixar o seu pai feliz e orgulhoso.
Muito devoto de São João, Seu Augusto, sempre no mês de junho, organizava uma festa junina no quintal de sua casa, com bandeirinhas, fogueira e comidas típicas, quando sempre convidava amigos, vizinhos e parentes. Era uma verdadeira festa junina. Todos dançavam quadrilha, cada um com seus respectivos pares, à luz de uma fogueira e uma enorme mesa com milho, quentão, paçoca, arroz doce, entre outras iguarias, típicas das festas juninas.
Ana Flor recordava aqueles momentos com um sorriso no canto da boca e lágrimas nos olhos. Parecia que o cheiro das iguarias exalava em seu quarto e sentia na pele a temperatura amena, típica do mês de junho. O som do forró, muitas vezes, tocado pelo trio do Seu Severino, sanfoneiro, junto com um triângulo e uma zabumba.
Houve alguns anos em que as festas não foram muito agradáveis, pois nas poucas vezes em que Tia Evilásia compareceu com sua família, Dona Evarista sempre mudava de humor e tratava o marido e as filhas com rispidez. Parecia estar enfeitiçada, totalmente diferente daquela mãe e esposa dedicada e carinhosa.
Seu Augusto também organizava o bloco carnavalesco Alegria da Piedade, um bloco bem familiar, cujas fantasias e instrumentos de bateria ficavam em um galpão no fundo de sua casa, e a concentração era em frente ao seu portão. O Alegria da Piedade desfilava pelas ruas do bairro, e a vida era um verdadeiro mar de rosas. Tudo parecia poético e bucólico.
Quase sempre, às sextas-feiras, ao chegar do trabalho, seu Augusto levava queijos, presuntos, entre outras iguarias, com refrigerantes e cervejas. Enquanto ficava petiscando e bebendo cerveja com a esposa, as filhas brincavam no quintal e tomavam refrigerante. Fora os churrascos de domingo, que fazia de vez em quando sempre com a presença de amigos. Nesses churrascos, umas duas vezes, Dona Evarista brigou e tratou mal o marido e as filhas. Sua irmã, Evilásia, estava presente com a filha Sandra Isabel e o marido.
Tinha também o Príncipe, um enorme vira-lata, que dormia em frente à sua casa e a família de Ana Flor o adotou. Deram-lhe um nome nobre, e Seu Augusto fez uma bonita casa para o cão, com uma placa com seu nome acima da porta. O animal parecia se comunicar com o olhar.
Quase sempre, Dona Matilde, uma vizinha, conhecida como a “macumbeira da rua”, participava desses eventos em sua casa. porque costumava realizar rezas, com folhas de arruda, para curar enfermidades, entre outros trabalhos espirituais. A família de Ana Flor tinha muito gratidão por Dona Matilde, porque curou uma febre de Margarida que não baixava de jeito nenhum.
Em uma dessas reuniões em sua casa (não se lembrava de qual), recordou-se de que – ao ver Dona Evarista discutindo com o marido e tratando mal as filhas, percebeu que Tia Evilásia estava na festa com sua família –, Dona Matilde, muito séria, comentou com uma vizinha:
– A Evarista tem uma obsessão pela irmã. Alguma coisa invisível a deixa transtornada quando a Evilásia está presente.
Na época ainda era criança e não deu muita importância àquele comentário, mas nunca mais se esqueceu daquelas palavras de D. Matilde, que demonstrava um verdadeiro ar de preocupação. Percebia que até o Príncipe, que sempre era presente nos eventos, ficava arredio com a presença da Tia Evilásia e a esquisitice de Dona Evarista quando a irmã estava por perto.
Entretanto, na maior parte do tempo, sua vida era um paraíso, pois a tia com a família quase não os visitava, e a sua mãe era sempre um doce na ausência desses. Na época, ainda muito menina, não se dava conta de que a presença de Evilásia é que influenciava o comportamento de sua mãe. Mesmo depois que começara a ligar os fatos, ainda não conseguia entender o porquê.
Dois anos mais tarde, sua mãe, para não ficar em casa, começou a trabalhar como servente na escola municipal, onde, posteriormente, Ana Flor começaria a trabalhar como professora. Trabalhava com muito gosto, os alunos e o corpo docente a adoravam devido ao seu asseio e dedicação em relação à unidade escolar.
Naquele tempo, Dona Ivone já era professora da escola. Ainda bastante jovem, tornou-se diretora alguns anos depois, e nunca mais largou o cargo. Inicialmente, havia a impressão de colocar ordem na casa, era jovem, e sempre dava boas ideias nas reuniões pedagógicas.
Dona Evarista, apesar de trabalhar como apoio, tinha mais respeito e consideração na comunidade escolar do que a maioria dos professores. Quando os alunos estavam fazendo bagunça e ela passava, diziam:
– Fica quieto, lá vem a Tia Evarista.
Na concepção de Ana Flor, na infância, no comecinho da adolescência, a Piedade era o melhor lugar do mundo e a sua família perfeita. Sua casa dava gosto de morar, e a escola onde sua mãe trabalhava, e que ela e Margarida estudaram no primário, era limpa, organizada e prazerosa. Todos os colegas de turma e até professores as olhavam com bons olhos simplesmente pelo fato de serem filhas da Evarista.
Talvez devido ao fato de o ambiente escolar, nos seus primeiros anos de ensino, ser tão prazeroso e inesquecível, foi que decidiu ser professora, prestar concurso para o Município e conseguir trabalhar naquela escola onde havia estudado na infância. Triste ilusão.
Olhou emocionada os seus poucos manuscritos e desenhos malfeitos da Menina Florzinha, sua principal personagem dos tempos em que ainda sonhava ser uma grande escritora de literatura infantil. Que lições de vida que sua personagem transmitiria aos seus jovens leitores.
Despertou com a briga no quarto ao lado. Margarida discutia com Wesley.
NÃO PERCAM O CAPÍTULO DE AMANHÃ.
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Tá ficando bom.
Assim como o bairro, a família entrou em decadência! Que triste!