Por: Jorge Eduardo Magalhães
Estava terminando o último ano do Ensino Fundamental e já preparada para começar o curso Normal, de Formação de Professores quando, em uma noite chuvosa, Tia Evilásia bateu em sua porta, com sua prima Sandra e Carlinhos, que tinha uns quatro anos.
– O traste do meu marido chegou em casa bêbado e quis me agredir! – disse Tia Evilásia, aos prantos.
Obviamente, Dona Evarista e seu marido a acolheram, junto com seus filhos. Pagaram o táxi que a levou da Penha até a Piedade e esperava, em frente à casa, para receber o pagamento da corrida.
Logo, ao perceber a gravidade dos acontecimentos, Ana Flor e Margarida receberam a prima Sandra Isabel, que tinha a idade de Ana Flor, com muito carinho, e a levaram para o quarto, enquanto a Tia Evilásia contava os detalhes de seu martírio à irmã e ao cunhado.
Apesar do fato de Dona Evarista mudar totalmente seu comportamento na presença da família da irmã, Ana Flor gostava muito da tia e dos primos, pois não tinham culpa da estranheza de Dona Evarista; aliás, na verdade, Ana Flor nem se dava conta de que a mãe mudava. Na infância e na adolescência, temos a impressão de que tudo é natural.
Conversando no quarto, recordaram de quando ainda eram pequenas e Ana Flor, apesar de ainda não ter escrito, já havia criado em mente a Florzinha, sua personagem que, na remota infância, era uma amiguinha imaginária e depois passou a ser uma criação que pretenderia lançar. Ana Flor sonhava ser escritora, a dizia a Sandra, que sonhava em ser atriz, que ela viveria a Florzinha no teatro, no cinema ou na televisão. Criava diálogos para a prima que interpretava, acreditando que era uma grande atriz.
Toda vez que Sandra fazia suas interpretações, Dona Evarista ficava mais orgulhosa do que a mãe da menina e aplaudia com veemência. Certa vez, quando Ana Flor disse que fora ela quem criara a personagem, sua mãe se limitou a dizer:
– Esta menina é cheia de maluquices.
No quarto, Sandra revelou à prima que ainda queria ser atriz; ou melhor, sonhava com a carreira artística, não tinha jeito para os estudos e não queria uma vida como as outras. Das outras vezes que revelou isso em família, Dona Evarista a elogiava, repleta de satisfação:
– A Sandrinha vai longe! Tem personalidade!
Naquela mesma noite, a família da Tia Evilásia passou a morar um longo tempo na casa da irmã, e todos foram realocados nos respectivos cômodos; Margarida passou a dormir no quarto de Ana Flor e Tia Evilásia com seus filhos ficaram com o quarto da filha mais nova de Dona Evarista.
A partir daquela data, Dona Evarista se transformou completamente. Ficava horas com o olhar perdido no horizonte, brincando com o Carlinhos e enaltecendo o talento de Sandra Isabel; aliás, não tinha outro assunto, senão os sobrinhos. Às vezes, as filhas ou o marido tentavam emendar algum assunto e, totalmente aérea, Dona Evarista dava um sorriso, junto com um olhar perdido e fazia algum comentário elogioso acerca da família da irmã.
Logo quando Tia Evilásia foi morar na casa da irmã com os filhos, Dona Matilde chamou Seu Augusto, ao encontrá-lo na rua, e lhe falou com certa preocupação:
– Seu Augusto, algo de muito ruim ronda a tua família, manda aquela tua cunhada embora da tua casa.
– Como eu posso fazer isso, Dona Matilde? Ela é irmã da Evarista, não tem onde morar.
– Então arranje uma casa para ela.
Apesar de não ter dado muita confiança para a vizinha, de fato, Seu Augusto ficava preocupado com a mudança de comportamento da esposa diante da presença da irmã, e em como as coisas estavam mudando em sua casa. Seu Augusto, ao sair do trabalho, parava em um bar para beber uma cerveja e demorar a chegar em casa. Tal hábito começou a ser mais frequente, e começou a chegar cada vez mais tarde para não se deparar com a agressividade da esposa.
Exagerava cada vez mais na bebida e começou a ter problemas com as responsabilidades, inclusive no trabalho. Por umas duas vezes, não foi trabalhar, pois não ouviu o relógio. Não perdia o emprego porque, realmente, ele dominava bem o conserto das máquinas.
Dona Evarista começou a ficar relapsa com a casa e em seu trabalho. Outrora cuidadosa com o lar e com o seu serviço como servente, passou a tratar tudo com enorme desleixo, a ponto de Dona Ivone, a diretora, chamar-lhe em seu gabinete para perguntar o que estava acontecendo.
Sem nenhuma explicação plausível, Margarida começou a ficar relapsa com os estudos, foi reprovada naquele ano e, antes, uma menina tímida e quieta, passou se comportar com vulgaridade. Só quem parecia alheia a todas as mudanças daquela família era Dona Evarista, que só pensava na família da irmã.
Príncipe, que sempre pulava de alegria quando Dona Evarista, Seu Augusto ou as meninas entravam pelo portão, passou a ficar cada vez mais arredio e quase não saía mais de sua casa. Começou a emagrecer a olhos vistos e seus pelos começaram a perder o brilho de outrora.
Por outro lado, Tia Evilásia não se mexia para conseguir um emprego e retomar a vida com seus filhos. Muitas vezes sumia o dia inteiro deixando os filhos com a irmã que, ao mesmo tempo em que tinha fascinação pelos sobrinhos, ficava nervosa quando anoitecia, a irmã não chegava, e o Luisinho caía em prantos pela ausência da mãe. Acabava descontando sua irritação nas filhas e no marido, que chegava cada vez mais tarde, completamente embriagado.
Tia Evilásia costumava a chegar de madrugada, com um carro que a deixava em frente ao portão e entrava, tomava um banho e ia dormir, sem dar nenhuma satisfação. Indignado, Seu Augusto tentou falar para a esposa com o intuito desta ter uma conversa com a irmã, mas ouviu vários desaforos como resposta. Parecia estar em transe.
Certa noite, quando Seu Augusto entrava no portão de sua casa, já ébrio, coincidentemente, o carro que sempre levava Tia Evilásia parou em frente na mesma hora. Seu Augusto olhou para dentro do carro e viu sua cunhada beijando ninguém menos que seu ex-marido, aquele mesmo que quis bater nela, e que a fez correr para sua casa.
A bebida lhe encorajou a fazer um escândalo, chamando-a de sem-vergonha, acordando toda a vizinhança. Evilásia entrou correndo para casa e seu marido ou ex-marido arrancou com o carro. A cunhada se trancou no quarto, mas Seu Augusto bateu na porta, até que ela abrisse.
– O que houve, homem? – perguntou Dona Evarista.
– A sem-vergonha da tua irmã correu para a nossa casa por causa do marido violento, mas está saindo com ele.
Dona Evarista olhou para a irmã:
– Isso é verdade, Evilásia?
– Eu posso explicar…
Seu Augusto não a deixou falar:
– Não quero mais que você continue morando aqui!
Dona Evarista foi em defesa da irmã:
– Não posso colocar nem ela nem meus sobrinhos para fora, eles são sangue do meu sangue!
– Então dou uma semana para ela ir embora.
Três dias depois, Tia Evilásia foi embora, mas deixou os filhos, dizendo que os pegaria em breve.
Demorou quase duas semanas, Tia Evilásia não apareceu e Seu Augusto foi, pessoalmente, levar as crianças no apartamento da cunhada, no conjunto habitacional da Penha.
Era perto do Natal e, ao se despedir dos sobrinhos, Dona Evarista dizia chorosa:
– Lá não tem Papai Noel.
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