Por: Jorge Eduardo Magalhães
Pouco a pouco, a casa começou a apresentar os sinais de desleixo. O mato começou a crescer no quintal, Príncipe estava raquítico e o laguinho, que Seu Augusto tinha tanto zelo, foi ficando com a água verde; os cômodos daquele lar, outrora tão bem cuidados, estavam sujos e empoeirados à medida que o tempo passava.
Dona Evarista demonstrava cada vez mais desinteresse em seu serviço como servente. Se antes era a primeira a chegar e a deixar o chão e as carteiras da escola brilhando, passou a ficar horas sentada em no banco de um depósito de materiais de limpeza, completamente desligada, ou então falando com as colegas de trabalho sobre sua irmã e seus sobrinhos.
Com o passar dos anos, as brigas conjugais se tornaram frequentes, tanto pela bebida do marido quanto pelo desleixo da esposa em vários aspectos. Margarida foi ficando cada vez mais vulgar e relapsa com os estudos, e não chegou a terminar o ensino fundamental e agora era chamada de “alegria da Piedade”. No trabalho e entre a vizinhança, que antes falavam bem sobre aquela família, passaram a fazer comentários maliciosos sobre eles.
Príncipe foi emagrecendo a olhos vistos: seus pelos começaram a rarear e, entre eles, feridas. Estava cada vez mais arredio, quase não saía de sua casinha que, em outros tempos, era super bem cuidada. Não queria mais comer e não pulava mais de alegria quando os seus donos entravam pelo portão.
A única que ainda parecia ter salvação era Ana Flor, que seguia firme em seu Curso Normal, sendo uma das melhores alunas de toda a escola, dedicando-se com afinco nos estudos e nos estágios. Sempre olhava para o imponente prédio da universidade, do outro lado da estação, sonhando que, em breve, cursaria ali Pedagogia. O estudo seria a sua salvação.
Seu Augusto, em seus, agora, raros momentos de sobriedade, elogiava o desempenho e dedicação da filha mais velha. Dona Evarista parecia alheia a todo seu esforço, sempre chamando de esquisita e comparando a sua introspecção com a desenvoltura de Sandra Isabel que, assim como Margarida, também ainda não havia terminado o ensino fundamental.
Ana Flor andava na contramão do declínio de sua família. Apesar da pouca idade, tinha a convicção de que as coisas nunca mais seriam como antes, e era dali para pior: sabia que sua única chance de se livrar daquele meio familiar seria se formar e criar coragem para sair daquele inferno que, em outros tempos, era o seu mais doce recanto.
Para tentar fugir um pouco de sua dura realidade, lia bastante, entregava-se aos estudos e às suas escritas infantis, cuja personagem principal era a Menina Florzinha e as singelas aventuras. Lembrava-se de quando era mais nova, de quando sonhava em ser uma escritora famosa…a prima Sandra Isabel viveria sua personagem no teatro e, quem sabe, no cinema e na televisão. Um dia tudo seria diferente.
O tempo que passava fora de casa entre a escola e o estágio em uma escola pública também era o seu refúgio. Foi naquele tempo que começou a ter cada vez menos vontade de ir para casa, e ficava rondando pelas ruas, fazendo hora para retornar ao seu tão amargo lar.
Ao entrar no portão, percebia que o doce odor das rosas começava a se esvair, dando lugar a um nauseabundo cheiro de bolor ou algo parecido. A atmosfera era completamente diferente de um passado recente, mas que já parecia tão distante. O lugar e as pessoas eram os mesmos; entretanto, parecia ser uma outra vida, um plano diferente.
Quando tinha trabalho no colégio, o grupo era formado sempre pelas mesmas meninas, que queriam que Ana Flor participasse. Cada trabalho era feito na casa de uma menina diferente, mas, quando chegava a vez de ser na casa de Ana Flor, sempre inventava uma desculpa.
Apesar de ser uma menina bastante estudiosa e muito elogiada pelos professores, Ana Flor se tornava cada vez mais distante e apática. Aos dezessete anos, enquanto sua irmã, dois anos mais nova, já tinha saído com metade da Piedade, Ana Flor ainda não havia beijado ninguém. Enquanto Margarida era conhecida como a “alegria da Piedade”, Ana Flor era vista como uma menina esquisita, inclusive por sua mãe, cujos transes eram cada vez mais frequentes, pois não perdia chance de desdenhar da filha mais velha.
Seu Augusto, que bebia cada vez mais, nada falava, apenas chegava tarde da noite e, simplesmente, ia dormir. A única pessoa com quem ele ainda interagia era com Ana Flor; vez ou outra, perguntava pelos seus estudos e, assim, demonstrava ter perdido o interesse por tudo e por todos.
As coisas pareciam piorar quando a Tia Evilásia aparecia por lá com os filhos. Soubera que Carlinhos começava a andar em más companhias lá na Penha, e Sandra Isabel, cada vez mais vulgar, dissera que um senhor estava empresariando sua carreira de atriz e modelo, e que seria muito famosa, para o contentamento de Dona Evarista, que rasgava a sobrinha com elogios.
– Esta menina vai longe! Um dia será muito famosa! Sinto isso! – dizia com um olhar distante e profético, não levando em conta o total desinteresse da sobrinha pelos estudos.
Toda vez que ia visitar sua família, Tia Evilásia falava mal do marido o tempo inteiro e Dona Evarista a aconselhava:
– Ele é um homem bom, Evilásia. Você que não sabe levá-lo. Pior eu que tenho que aturar aquele beberrão e essa molenga aqui. A única na casa que ainda tem alguma atitude é a Margarida. Essa aí puxou o pai, molengona igual a ele – dizia, apontando para Ana Flor.
Sem falar nenhuma palavra, Ana Flor pedia licença para as visitas e se trancava no quarto para que ninguém a visse chorar. Fazia tudo de forma silenciosa para ninguém ouvir o seu pranto. Parecia que, chorando debaixo das cobertas, aliviava um pouco o seu tristonho coração.
O estado de transe de Dona Evarista parecia piorar na presença da irmã. Tratava Ana Flor ainda pior, e elogiava a desenvoltura de Sandra Isabel e a esperteza de Carlinhos. O clima ficava ainda pior do que já era no dia a dia. Por isso, Seu Augusto quase não parava em casa, principalmente quando a cunhada ia visitá-los.
Príncipe parecia absorver toda aquela negatividade que pairava sobre a família. Cada vez mais arredio e doente, em uma manhã chuvosa, amanheceu morto em sua casinha malcuidada. Naquele dia, Seu Augusto não bebeu e, com a ajuda de Ana Flor, enterraram-no ali, no quintal. Dona Evarista não saiu de casa, Margarida passara o dia inteiro fora e só chegou tarde da noite.
A partir da morte de Príncipe, Dona Evarista começou a piorar em suas atitudes: mais agressiva, deixava a casa cada vez mais suja, e pegava da rua qualquer cachorro ou gato abandonado que, rapidamente, começavam a se reproduzir. O perfume das rosas desapareceu completamente, e uma insuportável morrinha tomou conta de todo o ambiente.
Seu Augusto ainda, de certa forma, percebendo o rumo que tudo tomava, tentou conter as manias da esposa, mas sempre era rebatido com ofensas e xingamentos. Como não aguentava mais o clima, acabou saindo de casa, e foi morar em um quartinho nos fundos da fábrica.
Naquela noite, quando o pai saiu de casa, após quase agredir a esposa, Ana Flor chorou muito. Ali se dera conta de que a sua família havia acabado de vez. Toda a sua, ainda que pouca, esperança de tudo voltar a ser como era antes, esvaíra-se para sempre.
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Que triste! A energia das pessoas pode mesmo mudar tudo!
A estoria esta ficando cada vez melhor