Por: Jorge Eduardo Magalhães
Assim que terminou o curso Normal e depois do traumático baile de formatura, Ana Flor prestou concurso para a Rede Municipal de Educação e o vestibular de Pedagogia, na universidade, do outro lado da estação. Foi aprovada em ambas, com excelente classificação.
O único da família que realmente manifestou orgulho foi Seu Augusto, que a abraçou emocionado quando Ana Flor foi lhe comunicar, na hora do seu almoço, as duas grandes vitórias. Sua mãe e sua irmã ouviram como se nada tivesse acontecido. Seu pai, naquele dia, ainda não tinha bebido.
– Eu sabia que você conseguiria, minha filha!
– Estudei tanto, papai.
– Você vai longe, Florzinha!
– Agora só falta recuperar nossa família.
Seu Augusto se calou e abraçou a filha com força.
Como obteve uma das primeiras colocações nos dois concursos, na universidade ganhou uma bolsa de cinquenta por cento, e na Rede Municipal de Educação pôde escolher onde trabalharia. Não gostava mais da escola em que sua mãe trabalhava, e nem da Dona Ivone, a diretora, mas escolheu lá porque era perto de sua casa e, principalmente, da universidade. Assim que se formasse, pediria remoção. Levou em conta o custo-benefício.
Ficou chocada: logo quando tomou posse e foi trabalhar na escola em que havia estudado na infância, percebera de imediato o quanto estava degradada e destruída, em todos os aspectos. As paredes pichadas, as salas e os banheiros imundos e sem ventilação e os alunos sem uniforme.
Ainda tinha de ouvir os comentários dos colegas e dos alunos, cochichando que ela era a filha da casa imunda. Dona Ivone, sempre com a sua pseudobondade, vinha lhe falar com uma irritante voz açucarada:
– Sabe que a sua mãe não faz nada, fica o dia inteiro sentada na sala de materiais de limpeza, mas tenho um bom coração e a mantenho aqui. Se não fosse eu, já teria sido devolvida há muito tempo.
Tinha vontade de esmurrar a cara daquela mulher, mas dava um sorriso e a agradecia entre os dentes. Só ficaria naquela escola até terminar a faculdade e, assim que se formasse, prestaria outro concurso e procuraria outra unidade escolar para trabalhar, bem longe da Piedade.
A fala ordinária da diretora não deixava de ser verdade, Dona Evarista ficava o dia inteiro sentada, entre rodos e vassouras, apenas falando na família da irmã, na esperteza de Carlinhos e na duvidosa carreira artística de Sandra Isabel: histórias que todos já conheciam de cor.
Ana Flor começou o curso de Pedagogia, e logo professores e colegas viram o seu valor. Lia bastante sobre as diversas correntes dos mais variados educadores e, com louvor, debatia com professores. Todos podiam enxergar a inteligência e dedicação de Ana Flor, menos, é claro, sua mãe, que sempre desdenhava de todas as suas conquistas.
A luz e a água de sua casa foram reestabelecidas, pois Ana Flor recorreu ao seu pai, que deu um jeito, pagando as contas atrasadas.
– Mamãe vive endividada por causa da família da Tia Evilásia! – disse Ana Flor a Seu Augusto.
– A Evarista não tem jeito. Sempre foi assim. Está cada vez pior – dizia o pai com hálito de cerveja, em pleno horário de expediente.
– Posso te perguntar uma coisa, papai?
– Claro, minha filha.
– Por que a mamãe tem toda essa fascinação pela família da Tia Evilásia? Isso é terrível.
Seu Augusto sorriu, melancólico.
– Boa pergunta, Florzinha.
– Desde que eu era criança, venho percebendo que a mamãe muda totalmente o comportamento na presença da Tia Evilásia ou dos seus filhos. Ela já chegou a bater em mim e na Margarida por motivo bobo, só para aparecer para a irmã.
– Ela sempre foi assim, desde que éramos namorados. Também nunca entendi este comportamento.
– Sabendo disso, vão sempre pedir alguma coisa lá em casa. Até dinheiro para pagar dívida de drogas do Carlinhos já pediram. Mamãe fica endividada. Ficamos quase um mês sem água e sem luz neste calor, e a mamãe parecia não se importar com isso.
– A Evarista não tem jeito.
– Será que não?
– É daí para pior.
Foi durante este período que Sandra Isabel começou a trabalhar como dançarina e assistente de palco no Adilson Show, um programa de auditório, com um cenário bem pobre e cantores praticamente desconhecidos do grande público. Apresentado por Adilson Jr., que sempre vestia blusas exageradamente estampadas, era exibido em uma emissora com baixíssima audiência.
Logo no início da estreia do programa, Sandra Isabel ainda chegou a pedir dinheiro para a passagem. Nunca dizia onde era o estúdio do programa. Dona Evarista dava o dinheiro com gosto.
– Essa menina vai longe… – dizia suspirando.
– Mamãe! A senhora ganha pouco. A casa tem um monte de reparos para fazer. Não é justo ficar dando dinheiro para a Sandra.
– Só estou ajudando a menina! – dizia com ódio.
– Essa ajuda vai ser para sempre?
– Você está é com inveja dela, porque ela vai longe e você vai ficar para sempre aqui. Tua irmã ainda é mais esperta do que você. Tem sempre um dinheirinho, sai, vai para os bailes.
– Ah é? Com que dinheiro, se ela não trabalha?
– Ela e a Sandrinha são espertas.
Ana Flor se trancou no quarto bufando de ódio. Pensou em sair de casa, pedir remoção daquela escola horrível. Mas tinha a faculdade. Primeiro se formaria para depois resolver a sua vida. Não teria como pagar um aluguel e a faculdade ao mesmo tempo. Era preciso aguentar firme.
Dona Evarista comprou um videocassete com dificuldade para gravar os programas em que a sobrinha e outras meninas dançavam, e que ia ao ar todos os sábados à tarde. Tinha orgulho de falar no trabalho:
– Lembra da Sandrinha, minha sobrinha? Pois é. Está trabalhando na televisão.
Na semana seguinte, a mulher de um motorista de ônibus, que trabalhava na linha do bairro, foi fazer escândalo em sua porta. Margarida estava saindo com seu marido e arrancando dinheiro dele. Todos os dias pegava seu ônibus, quando, orgulhosamente, entrava sem pagar passagem. Foi um enorme vexame.
Dona Evarista e Margarida só xingaram a antagonista na hora do escândalo, mas logo depois, agiram como se nada tivesse acontecido. Ana Flor morreu de vergonha, pois o fato se espalhou pelo bairro, chegou à sua escola, na universidade e até na fábrica em que seu pai trabalhava.
Coincidência ou não, logo depois de tal incidente, Seu Augusto passou mal no trabalho, teve um infarto e ficou internado no Hospital Salgado Filho. A única que se dedicou a cuidar do pai foi Ana Flor. Margarida e Dona Evarista agiam como se ele nem existisse.
Chegou a pedir licença no trabalho, que Dona Ivone concedeu com muita má vontade, sempre exaltando o seu bom coração, e perdeu muitas aulas na faculdade. Mas não se importava. Seu pai era tudo para ela.
– Você é a última flor da nossa família, dizia Seu Augusto em um leito de hospital, já com a voz enfraquecida.
– O senhor vai ficar bom, papai. Vamos ter a nossa família de volta! – dizia, sem convicção.
Em um mês, faleceu. O enterro foi no Cemitério de Inhaúma. No velório, apenas Ana Flor, sua mãe, sua irmã, uns poucos vizinhos e colegas de trabalho de seu pai. Somente Ana Flor chorava. A capela estava um verdadeiro silêncio, até aparecer Tia Evilásia com a família. Como se estivesse em um estado de transe, Dona Evarista começou a dar gargalhadas e gritar:
– Já foi tarde!
NÃO PERCAM O CAPÍTULO DE AMANHÃ.
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Que família desestruturada! O perfil psicológico de seus pais são complicados demais. O que essa garota vai fazer pra se salvar de sua mãe?
Pobre paipelo menis se livrou daquilo tudo
Pobre pai, pelo menos se livrou daquilo tudo