O matrimônio dos escravos na América Portuguesa é um tema que revela a complexidade das relações sociais e familiares no contexto da escravidão. A partir do século XVIII, o clero católico, em especial os padres jesuítas, assumiu uma posição firme em relação ao casamento dos negros cativos. Eles viam a união matrimonial como uma forma de dignidade e da vida familiar, e enfrentaram a resistência dos senhores de engenho, que frequentemente viam seus escravos como meras propriedades.
Em 1704, durante uma missão no Recôncavo da Bahia, dois padres jesuítas relataram um episódio de violência entre os escravos, revelando as tensões que surgiam em relações proíbidas. Homens angolanos assassinavam outros escravos por causa de seus relacionamentos extraconjugais com suas esposas. Esse evento trouxe à tona a importância, na visão dos jesuítas, de regulamentar os casamentos entre os cativos, que poderiam contribuir para a estabilidade social dentro das fazendas. Porém, muitos senhores mantinham-se indiferentes, considerando seus escravos apenas como bestas de carga, uma visão que desconsiderava as relações interpessoais formadas entre eles.
Os jesuítas, ao tentarem persuadir os senhores a permitirem o casamento dos escravos, encontraram barreiras: a principal delas era que um casamento oficial tornava a venda dos cativos mais complicada. A separação de uma família reconhecida pela Igreja era vista como uma violação dos laços formados e motivava muitas fugas. Neste contexto, o casamento se tornava um ato de resistência e de busca por dignidade.
Um exemplo marcante foi encontrado no Engenho da Ilha da Governador, no Rio de Janeiro, entre 1747 e 1748, onde os beneditinos compraram sete mulheres para se casarem com os escravos da fazenda. Essa ação visava não só assegurar a continuidade da mão de obra, mas também a formação de núcleos familiares que poderiam criar uma estrutura de apoio emocional para os cativos.
O Jesuíta Jorge Benci, em seu discurso sobre as “obrigações dos senhores para com os servos”, enfatizava a importância do cuidado e do respeito que os senhores deviam demonstrar. Ele argumentava que os matrimônios entre os escravos não apenas faziam parte de seus direitos, mas eram essenciais para a prevenção do vício e da concupiscência, uma perspectiva que refletia não apenas os valores cristãos, mas também um pragmatismo social.
As irmandades religiosas, como a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, desempenharam um papel crucial na vida dos escravizados. Elas ofereciam um espaço de acolhimento e uma oportunidade para reconstituírem suas identidades familiares e sociais. Milhões de cativos encontraram nesse ambiente não apenas um abrigo espiritual, mas apoio material, como ajuda para sepultamentos e cartas de alforria.
Contrariando a narrativa comum que apresentava os escravos como desprovidos de núcleos familiares estáveis, pesquisas mais recentes têm revelado a realidade de laços afetivos e relacionais ricos entre eles. As relações de parentesco entre os cativos se manifestavam de formas simbólicas e ritualísticas, como os compadrios e as “famílias de santo”. Esses laços ajudaram a manter a coesão social nas comunidades escravas.
A virada do século XVIII para o XIX trouxe uma urgência econômica para os senhores de engenho: manter os cativos casados e formados em famílias poderia evitar fugas e contribuir com a produção agrícola. A ideia de que o casamento e a família poderiam servir como fatores de contenção para a fuga dos escravos se tornava uma estratégia pragmática para assegurar a mão de obra, especialmente durante um período em que o número de novos africanos chegando ao Brasil diminuía com a abolição do tráfico.
Apesar das dificuldades e da brutalidade do sistema escravocrata, a família escrava resistiu. O registro de casamentos e batismos se faz presente em documentos da época, provando que a instituição familiar, mesmo sob o jugo da escravidão, não só se constituiu como também se fortaleceu. Casamentos longos e estáveis, que duravam mais de uma década, eram comuns, e muitas uniões entre escravos eram oficiais aos olhos da Igreja Católica.
O matrimônio dos escravos na América Portuguesa é uma janela para compreendermos como, mesmo nas condições mais adversas, formas de resistência e de busca por dignidade e amor se manifestaram. Reflete a riqueza da experiência humana e o desejo de se conectar, de criar laços e de construir uma vida, mesmo sob a opressão da escravidão. Essas histórias nos ensinam que, por trás das correntes, existiam corações pulsantes, lutando por sua liberdade e por sua família.
Denilson Costa