“Cumprir a lei nos obriga a pensar que o acesso à educação infantil é fundamental para que a gente faça justiça social no campo educacional”, disse a diretora de Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola do Ministério da Educação, Lucimar Rosa Dias. Foto: Edilson Rodrigues / Agência Senado.

Ensino da história e da cultura afro-brasileira não é aplicado nas escolas

Brasília – Sete em cada dez secretarias municipais de educação não fizeram nenhuma ação ou tomaram poucas providências para adotar o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas. Os dados, do Instituto Alana e do Geledés Instituto da Mulher Negra, foram citados nessa quinta-feira (19) pelo senador Paulo Paim (PT-RS) em audiência pública interativa na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) sobre os 20 anos da Lei 10.639, de 2003

A lei estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas disciplinas que já fazem parte das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio. A norma também institui a data de 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra no calendário escolar.

Cumprimento da lei

Em 2022, os institutos ouviram 1.187 gestores das secretarias municipais, o que corresponde a 21% das redes de ensino, sobre o cumprimento da lei. A pesquisa ressalta que os municípios são os principais responsáveis pela educação básica. Do total, 29% das secretarias têm ações consistentes e perenes no atendimento da legislação; 53% por cento fazem atividades periódicas com alguns projetos isolados em datas esparsas; enquanto 18% não realizam nenhum tipo de ação. 

— Precisamos contar todas as histórias do Brasil, pois não existe uma história única a implementar. A lei é uma das mais importantes ações para a mudança cultura e social no país. A implementação da lei é combater, na prática, o racismo no Brasil. A legislação completou vinte anos e garante uma das principais vitórias dos movimentos sociais e do movimento negro do pais, que tem sua história lapidada em um dos processos mais cruéis da humanidade, que foi a escravidão. Em 2008 a norma avançou, e incluiu e fortaleceu a luta dos povos indígenas com aprovação da Lei 11.645 — disse Paim.

Professora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e atual titular da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação (Secadi), Zara Figueiredo adiantou que o governo federal deve lançar, ainda neste ano, uma política nacional de educação que pretende contribuir para a implementação efetiva da legislação, que ela considera como “uma ação afirmativa do ponto de vista da educação básica, na medida em que recoloca a própria história da formação do Estado e da sociedade em outras instancias, outros termos e outro patamar”.

Na avaliação de Zara Figueiredo, essa lei padece de um mesmo problema que outros marcos legais têm no Brasil: a distância entre o ordenamento jurídico e sua plena implementação.

— Há leis muito sofisticadas, de qualidade, como a Lei 10.639, mas há um problema grande de implementação sobretudo nos entes subnacionais. A gente tem essa trajetória de dependência no Brasil, a distância entre o marco legal aprovado e a sua plena implementação. Nós temos uma baixa implementação de algumas ações da Lei 10. 639 na rede. A pergunta que a gente precisa fazer nesse momento, passadas duas décadas, é: o que a gente quer e o que a gente precisa da 10.639? Basta a dimensão curricular? Basta inserirmos o ensino de história e cultura afro-brasileira nos currículos? Ou nós precisamos ir além? Historicamente, na educação, o que nós fazemos é transformar um marco legal numa ferramenta de luta, mesmo quando ela não é implementada na sua integralidade. Foi assim com a EJA [modalidade de ensino destinada a educandos jovens e adultos que não puderam concluir seus estudos na idade adequada]. Temos que fazer da lei uma política de educação do Estado, precisamos avançar para além da política curricular — afirmou.

Pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas, João Marcelo Borges ressaltou que, apesar das dificuldades de implementação da lei em 20 anos, o que é “realmente impressionante e surreal é o fato de termos que criar uma lei para que o estudo da cultura desses povos, que construíram o Brasil, sua identidade, majoritariamente as pessoas pretas, ainda que escravizadas e trazidas para cá, precise ser incluído no currículo escolar”.

— As estruturas sociais brasileiras criaram quotas não formais para os brancos e os ricos, com desigualdades que alcançam o limite da crueldade quando a gente olha os números, que não têm a ver com percentuais plausíveis, aceitáveis. A gente está falando de um sistema, de uma sociedade que se estruturou de uma forma cruel. Imaginar que 3% da população detenha 60% da renda nacional dá a dimensão do que nós estamos falando. 1% da população tem 50% da renda nacional. Então, da mesma maneira que foi necessário, muito embora devesse não ser necessário criar a Lei 10.639, é o momento de a gente olhar para a frente, a gente precisa de mais avanços. Hoje a gente tem um contexto que nos permite fazer isso. Esse quadriênio no qual estamos [2023 a 2026] coincide com um momento de revisão ou formulação de marcos normativos cruciais para a educação brasileira, alguns normativos, outros operacionais — afirmou.

Diretora de Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola do Ministério da Educação, Lucimar Rosa Dias saudou os vinte anos da lei, “embora saibamos que há muito a fazer para que conquistemos uma educação livre de racismo”.

— Ela precisa operar na frente curricular, e precisamos olhar para o que as redes estão produzindo em termos de educação e como essa educação impacta ou não a vida de estudantes negros e negras. No caso da educação infantil, nós temos um diferencial. O que se discute na educação infantil é de outra ordem em termos de aprendizagem, que são as interações e a ludicidade. Cumprir a lei nos obriga a pensar que o acesso à educação infantil é fundamental para que a gente faça justiça social no campo educacional. Sabemos que há um gargalo. Temos, de zero a trÊs anos, ainda muitas crianças fora da educação porque não é uma etapa obrigatória, mas as pesquisas já nos mostram que o acesso à educação infantil desde o berçário produz aprendizagem e desenvolvimento fundamentais para o ser humano.

Aquilo que se produz nas universidades

Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Wilma de Nazaré Baía Coelho apontou dificuldades para fazer com que aquilo que se produz nas universidades seja efetivamente implementado como política estrutural nos cursos de formação inicial de professores.

— São esses professores que atuarão com a formação de crianças e adolescentes nas mais de 107 mil escolas e 38 milhões de matrículas. São essas pessoas que vão trabalhar na educação básica com esse contingente de pessoas que tem nome, sobrenome e cor. Esses professores não têm tido condições efetivas de aprofundamento para trabalhar e identificar não somente o racismo e discriminação no cotidiano e suas práticas educacionais. A Lei 10.639 apresenta uma potência e uma limitação ao mesmo tempo, porque nós precisamos fazer com que todo esse arcabouço jurídico que a acompanha seja efetivado desde as avaliações de cursos de formação inicial e instrumentos que avaliam as licenciaturas.

Autor do livro Atlas Geocultural da África, professor e doutor em Ciências da Cultura, Odair Marques da Silva afirmou que todos os órgãos do Executivo, Legislativo e Judiciário estão hoje praticamente convocados a desenvolver projetos que favoreçam a capilarização da implementação da Lei 10.639.

— Já passamos da fase da avaliação. Ela precisa da indução dos próprios órgãos públicos e das organizações sociais, federações, entidades de apoio, movimentos sociais, todos imbuídos do fortalecimento do combate ao racismo e preconceito. Percebemos o quão frágil, singelo e estereotipado está a citação de “África” nos conteúdos curriculares, principalmente nos materiais didáticos, e isso percorre do infantil ao universitário, até mestrado e doutorado. Essa estereotipação faz uma marca cognitiva e psicológica em todas as crianças de tal forma que gera uma relação de afastamento, e não de identidade e pertencimento, com relação ao continente africano, e isso reverbera em todas as relações.

Professor e pesquisador do Insper, Michael França ressaltou que, embora o país tenha se redemocratizado em 1985, com a eleição sucessiva de governos de direita e esquerda, o descompasso racial no mercado de trabalho entre brancos e negros segue constante.

— Ou seja, a gente tem falhado miseravelmente em nossas políticas públicas de inclusão. O cenário racial brasileiro melhorou atualmente, tem a questão das cotas, que está permitindo a um pequeno grupo ascender socialmente, mas, na hora em que a gente olha na ponta, o desequilíbrio racial entre os dez por cento mais ricos está ampliando ao longo do tempo, e quando a gente olha para as muitas variáveis, o desequilíbrio racial não está diminuindo, está constante ou ampliando. A gente vai ter que repensar as políticas públicas no Brasil se a intenção realmente for, de fato, criar uma sociedade mais inclusiva.

Com Agência Senado

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