Brasília – O Ministério Público Federal (MPF), a Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) ajuizaram, nesta sexta-feira (27), ação civil pública para que a União seja condenada a pagar R$ 100 milhões por danos morais coletivos gerados pela violação de direitos humanos durante operações policiais com participação da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Segundo os órgãos de Justiça, a atuação da PRF fora das estradas federais, em incursões e operações policiais, extrapola as atribuições da corporação e contribui para o aumento da violência e da letalidade das ações.
Além da indenização monetária, a ação pede que a União seja obrigada a adotar uma série de medidas visando a prevenção e reparação integral dos danos causados. Entre as providências requeridas, estão a instalação de câmeras corporais nos uniformes dos policiais rodoviários, a capacitação dos agentes em matéria de direitos humanos e segurança cidadã e a anulação da Portaria 42/2021 do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). Editada há dois anos (gestão de Jair Bolsonaro) , a norma infralegal – já questionada judicialmente – autoriza a participação da PRF em operações conjuntas com outras polícias ostensivas.
Previsão de competências originarias
Para o MPF e as Defensorias Públicas, a portaria do MJSP é ilegal e inconstitucional, pois cria atribuições que exorbitam a previsão de competências originárias da PRF. “A norma extrapolou os limites impostos constitucional e legalmente, dando respaldo e aparente legalidade para as violentas operações que contaram com a participação da PRF”, apontam os órgãos. A ação pede que a União seja condenada a reconhecer as violações praticadas e a formalizar pedido público de desculpas por parte do Estado brasileiro.
Os órgãos de Justiça chamam atenção para a escalada da letalidade na atuação da PRF nos últimos anos. De 2019 até o ano passado, 126 pessoas foram mortas em confrontos com a participação de policiais rodoviários em todo o país, sendo 57 óbitos registrados durante chacinas, quando há a morte de três ou mais pessoas em um mesmo grupo.
Entre esses casos, estão a operação conjunta com a Polícia Militar em Varginha (MG), que totalizou 26 mortes, e três operações em parceria com o Batalhão de Operações Especiais (Bope) do Rio de Janeiro: uma no Complexo do Chapadão, Zona Norte da capital, com 6 mortes, e duas na Vila Cruzeiro – no Complexo da Penha – que resultaram, respectivamente, em 8 e 23 óbitos. A morte de Genivaldo de Jesus Santos, asfixiado, torturado e morto dentro de um carro da PRF em Sergipe, também foi mencionada na ação.
Para os autores do processo, os dados demonstram que houve remodelagem do papel da PRF nos últimos anos, quando a corporação passou a contar com aparatos políticos e até mesmo legais que buscaram legitimar a atuação mais violenta, voltada para o combate à criminalidade em territórios marginalizados. “A presente ação pretende expor a desvirtuação da atuação de uma força de segurança que, equivocadamente autorizada a participar de operações policiais nos últimos anos, foi responsável pelo incremento da violência policial e pela grave violação de direitos humanos de pessoas pobres, negras e faveladas”, registra o texto enviado à Justiça.
Racismo estrutural da sociedade brasileira
Segundo o MPF e as Defensorias Públicas, o quadro evidencia o racismo estrutural da sociedade brasileira, refletido na completa falta de zelo e de respeito com a vida na execução de operações policiais em comunidades e favelas, onde a população é predominantemente negra. “A atuação da Polícia Rodoviária Federal nos últimos anos, fora das estradas federais, é violadora de direitos fundamentais, difusos e coletivos, sendo direcionada a uma população muito bem definida: os moradores de favelas e periferias, pobres e majoritariamente negros”, apontam os órgãos.
A ação destaca que, apesar da condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em razão das chacinas na Favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão, o que se vê nas ações de segurança pública realizadas nas favelas e periferias é uma “política de extermínio e instrumentalização da vida levada a cabo pelo aparato estatal”. Tal opção tem como efeito colateral o temor e a desconfiança da sociedade. “As forças de segurança pública – e no presente caso, mais especificamente a PRF – passam a ser vistas pela população não como corporações a serviço da proteção de seus direitos, mas sim como um braço estatal armado e aparelhado para violar direitos”.
Titular do 52o Ofício Exclusivo do Controle Externo da Atividade Policial no Rio de Janeiro, o procurador da República Eduardo Benones frisa que as operações e incursões policiais em comunidades não devem ser realizadas com base em meras suspeitas ou para cumprir mandados de prisão requentados dos arquivos. Segundo o membro do MPF, nenhuma prisão ou apreensão justifica a perda de vidas humanas, especialmente de crianças e jovens.
“Enquanto comunidades e favelas forem tratadas como campos de guerra, onde só existem inimigos, as mortes – não importa de quem – serão consideradas apenas danos colaterais ou baixas inevitáveis”, avalia. O procurador ressalta ainda que o uso de tecnologias já disponíveis pode conferir precisão e transparência ao trabalho policial, protegendo não apenas as populações nas comunidades, mas os próprios policiais.
O ajuizamento da ação civil conjunta ocorre exatamente um ano após a morte do menino Lorenzo Palhinhas, em 27 de outubro de 2022, durante operação da PRF no Complexo do Chapadão, Zona Norte carioca. Segundo as apurações, o jovem de 14 anos era motoboy e fazia entregas quando foi atingido por um tiro de fuzil. Outros dois garotos foram sequestrados e supostamente torturados para prestar declarações que incriminariam o motoboy. Eles ficaram mais de cinco horas dentro de uma viatura da PRF que estava no local.
O MPF, no âmbito do controle externo da atividade policial, instaurou investigação criminal para apurar os fatos e ingressou na Justiça com medida cautelar para assegurar que as armas dos policiais fossem periciadas. O procedimento investigatório criminal ainda não foi concluído.
Em outra ação civil, as Defensorias Públicas da União e do Rio de Janeiro requerem o pagamento de indenização por dano moral e de pensão à família do garoto, além de um pedido de desculpas formal por parte do Estado aos familiares da vítima.
Com MPF
Wagner Sales – Editor de Conteúdo